UM PROJETO DE INSTRUÇÃO PÚBLICA
Por JOSÉ MARTÍ
Quando todos os homens souberem ler, todos os homens saberão votar, e como a ignorância é a garantia de extravios políticos, a consciência própria e o orgulho da independência garantem o bom exercício da liberdade. Um índio que saiba ler pode ser Benito Juarez; um índio que não foi à escola terá perpetuamente no corpo frágil um espírito adormecido. Até essas palavras me parecem inúteis, tão invulnerável e útil é para mim o ensino obrigatório.
E que forças não seriam descobertas em nós mesmos se precipitadas as luzes de Victor Hugo sobre nossos oito milhões de habitantes, assim como em todos nós da América do Sul? Não somos ainda suficientemente americanos. Todo povo deve ter sua expressão própria – temos uma vida legada e uma literatura balbuciante. Há na América homens especializados na literatura europeia, mas não temos um literato exclusivamente americano. Há de existir um poeta que assoma sobre os cumes dos Alpes de nossa serra, de nossos altivos rochosos; um historiador potente, mais digno de Bolívar que de Washington, porque a América é o inesperado, a brotação, as revelações, a veemência, e Washington é o herói da calma, formidável mas sossegado, sublime mas tranquilo.
O que não fará entre nós o novo sistema de ensino? Os indígenas nos trazem um novo sistema de vida. Nós estudamos o que nos trazem da França, mas eles nos revelarão o que receberem da natureza. Desses rostos acobreados brotará nova luz. O ensino vai revelá-los a si mesmos. Não nos dará vergonha que um índio venha a beijar nossas mãos; teremos orgulho de que se aproxime para nos dar as suas.
Um projeto de instrução pública é um viveiro de ideias. É criminoso o divórcio entre a educação que se recebe em uma época e a própria época. Educar é depositar em cada homem toda a obra humana que a antecedeu; é fazer de cada homem a síntese do mundo vivo até o dia em que viva; é colocá-lo ao nível de seu tempo, para que flutue sobre ele, e não deixá-lo abaixo de seu tempo, com o que não poderá seguir a flutuar. É preparar o homem para a vida.
Grande benção seria se as escolas fossem como casas de razão onde, com judicioso guia, a criança se habitua a desenvolver pensamento próprio e se lhe oferecem, de modo organizado, os objetos e ideias pelos quais possas deduzir por si mesma as relações diretas e harmônicas que a enriquecem com suas informações, ao mesmo tempo em que a fortificam no exercício e prazer de tê-las descoberto. No entanto, as escolas, com seus belos textos e suas grandes facilidades, suas lousas e lápis, suas gramáticas e geografias, são meras oficinas de memorização onde se enfraquecem as crianças ano a ano em estéreis soletrações, mapas e contas; onde os alunos repetem em coro lições prontas sobre montes e rios; onde não se ensinam os elementos vivos do mundo em que se habita nem o modo pelo qual a criatura humana pode melhorar e servir na sua inevitável inter-relação; onde nunca se acende, entre professores e alunos, aquele calor do carinho que agiganta nos educandos a vontade e a atitude de aprender, e que se deposita docemente em suas almas, como uma visão do paraíso que lhes conforta e alegra na rota nos inevitáveis desfalecimentos da vida.
As coisas não haverão de ser estudadas somente nos sistemas que as dirigem, mas também na maneira como se aplicam e nos resultados que produzem. O ensino é uma obra de infinito amor.
As reformas só são fecundas quando penetram no espírito dos povos e sobre ele resvalam sem tocá-los, como a areia seca nas rochas inclinadas; quando a rudeza, a sensualidade ou o egoísmo da alma pública resistem ao influxo de melhoria das práticas que só se acata em forma e nome.
De que vale organizar regras, graduar cursos, repartir textos, levantar prédios, acumular estatísticas, se os que se ocupam desse trabalho são mestres vencidos na dura e agreste batalha da vida, ou jovens descontentes e impacientes que chegam como os pássaros de fora da escola, e têm seu emprego nela como um castigo imposto por sua pobreza, como aborrecida prisão de sua juventude, como uma carga incômoda? Não só se vê a existência principalmente pelo aspecto da necessidade de seu trabalho ser o suficiente para suas necessidades, mas pelo fato de ver exclusivamente sob esse aspecto. Essa é a preocupação de todos, o medo, a fadiga. Disso padeceram sem cessar, e disso padecem o legislador que organiza os cursos, o especialista que os aconselha, o professor que irá ensinar. E isso eles proveem para evitar a angústia que têm sentido, para dar ao aluno os meios elementares de lutar pela vida com algum êxito. Enganam-se com os meios, mas tentam. Ler, escrever, contar: isso é tudo que a eles parece que as crianças precisam saber. Mas o que ler se não se instila a afeição pela leitura, a convicção de que ela é saborosa e útil, o prazer de ir erguendo a alma com a harmonia e a grandeza do conhecimento? A quem escrever se não se nutre a mente de ideias nem se aviva o gosto por elas? Contar sim, isso ensinam aos montes. Todavia, as crianças não sabem ler uma sílaba, enquanto já se ensinou às criaturas de cinco anos a contar de memória até cem.
De memória! Assim raspam os intelectos, como as cabeças. Assim sufocam a personalidade da criança, em vez de facilitar o movimento e a expressão da originalidade que cada criatura traz em si. Assim, produzem uma uniformidade repugnante e estéril, uma espécie de desocupação das inteligências. Em vez de por diante dos olhos das crianças os elementos vivos da terra em que pisam, os frutos que ela cria e as riquezas que guarda, os modos de fomentar aqueles e extrair estas, a maneira de livrar a saúde do corpo dos agentes e influências que o atacam, e a beleza e superior conjunto das formas universais da vida, assim inoculando, no espírito das crianças, a poesia e esperança indispensáveis para levar com virtude a faina humana, em vez disso os empanturram nestas escolas com limites de estados e fileiras de números, de dados ortográficos e definições de palavras!
O remédio está em desenvolver a inteligência, de uma só vez, a inteligência do aluno e suas qualidades de amor e paixão com um ensino organizado e prático dos elementos ativos da existência em que há de combater e a maneira de mobilizá-los e utilizá-los. O remédio está em mudar corajosamente a instrução de verbal para experimental, de retórica para científica, em ensinar ao aluno, ao lado do abecedário das palavras, o abecedário da natureza; em extrair disso – ou em dispor as coisas de modo que os estudantes o façam, esse orgulho de ser homem e essa constante e sadia impressão de majestade e eternidade que vêm como das flores o aroma, do conhecimento dos agentes e funções do mundo ainda na tenra infância em que o haveriam de reduzir à educação elementar.
Homens vivos, homens diretos, homens independentes, homens amantes! Isso há de se fazer nas escolas, que agora não se faz.
REFERÊNCIA:
MARTÍ, José. Textos selecionados. In: NASSIF, Ricardo; SANTOS, Eduardo (Org.). José Martí. Recife: Fundação Joaquim Nabuco; Editora Massangana, 2010 (Coleção Educadores MEC).
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