CLARA NUNES E A IMPORTÂNCIA DA SUA ARTE NA LUTA CONTRA O PRECONCEITO ÀS RELIGIÕES DE MATRIZES AFRICANAS DURANTE A DITADURA MILITAR
Por MONIQUE FRANCIELLE CASTILHO VARGAS (Revista da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros - ABPN)
Na década de 1970, Clara Nunes foi a cantora que se consagrou cantando sambas que contavam a história de um Brasil mestiço, com seus costumes calcados em uma cultura de genealogia africana. Sua expressão performática eram alusões intensas a religiosidade de matriz africana.
Neste contexto, suas roupas de apresentação eram predominante branca (cor predominante das vestimentas dos filhos de santo da Umbanda), salvo algumas vezes que aparecia com as vestes de algum orixá (os deuses considerados forças da natureza cultuados pelas religiões de origem africana da nação iorubana que estão presentes nos cultos de Umbanda e Candomblé no Brasil) especifico, como por exemplo, no clipe gravado no ano de 1979 da música “Conto de Areia”, onde aparece com a indumentária de Iemanjá (Orixá mulher, rainha do mar é a guardiã dos mares, das praias, das águas salgadas. Relacionada à prosperidade e abundância em todos os sentidos; acolhimento, zelo, preocupação com o bem-estar dos que ama e procriação com sentido de progresso), além de sua expressão performática que também era alusão ao orixá.
Clara Nunes foi uma das maiores intérpretes da Música Popular Brasileira, marcando época no mercado fonográfico brasileiro. Clara Nunes foi a primeira mulher a vender mais de cem mil cópias de disco, cujo seu repertório são referências intensas a cultura de matriz africana e os desafios da luta antirracista vivenciados pelos movimentos sociais que lutavam contra o preconceito étnico racial.
Em 1971, gravou pela Odeon o disco intitulado Clara Nunes, alcançando uma vendagem de 158.710 cópias, entre as músicas gravadas, estavam: Ê baiana, Misticismo da África ao Brasil, Festa para um rei negro e Aruandê... Aruandá. Todas essas canções expressavam fundamentos da cultura de matriz africana, principalmente elementos de procedência religiosa. Os anos seguintes consolidaram a carreira artística de Clara Nunes, chegando ao ápice de seu disco Canto das Três Raças, lançado em 1976 vender 1.285.058 cópias.
Com relação à performance corporal é importante ressaltar que Clara Nunes fez curso de expressão corporal e dança afro. Experiência esta de extrema importância e eficácia simbólica de construção da realidade que concretiza aquilo que o artista quer expressar. A performance artística que Clara Nunes apresentava conseguia expressar uma mensagem que direcionava o público a uma interpretação. Conseguia ir além da palavra escrita e cantada. O objetivo de Clara Nunes era consolidar oralidade e representação atrelados a prática religiosa de Umbanda e de Candomblé.
Enquanto Clara Nunes era apenas uma bela voz, não conseguiu conquistar um publico fiel, nem ter visibilidade de âmbito nacional. Para ser um profissional da música é preciso ter mais que um timbre de voz bonito e afinado, sua interpretação necessita ir além da palavra cantada; corpo, voz e texto devem estar em harmonia expressando a mesma mensagem os mesmos sentimentos. Além dos elementos da cultura africana, somadas a sua interpretação performática, Clara Nunes, nas inúmeras entrevistas concedidas sempre declarava espontaneamente o seu pertencimento à Umbanda. Também afirmava que tinha prazer em cantar as coisas que faziam parte da sua religiosidade e que sua crença norteava toda sua representação artística. Conseguiu mostrar a cultura africana de maneira positiva, uma vez que, esta ainda era caracterizada e assimilada como inferior por ser algo que pertencia a população negra, herdeira de um passado escravo.
Clara Nunes trouxe visibilidade à cultura africana, em especial para a religiosidade, uma prática marginalizada pela sociedade, passou a ser exaltada por todas as classes sociais brasileiras, pois na década de 1970, conquistou reconhecimento nacional, e por consequência disso a grande maioria da população sabia entoar no mínimo um trecho de algum samba gravado por Clara Nunes. No período entre 1969 e 1974, Clara Nunes construiu e consolidou uma imagem artística que a associa fortemente à Umbanda e ao candomblé. Gravou os LPs Clara Nunes; Clara, Clarice e Clara; Clara Nunes: Brasília e Alvorecer, com o qual quebrou um antigo tabu do mercado fonográfico brasileiro que dizia que mulher não vendia discos, com a marca de aproximadamente 400 mil cópias vendidas, números semelhantes aos de Roberto Carlos, considerado o "Rei das vendagens”.
Nesses discos foram gravados inúmeros sucessos, porém o que interessa são as letras que fazem referência a uma africanidade, sendo assim, seguem o título das canções localizadas com a temática: “Aruandê... aruanda”, “Ê Baiana”, "Misticismo da África ao Brasil", “Festa para um Rei Negro”, "Ilu Ayê", "Tributo aos orixás", "Morena do Mar", "Homenagem a Olinda", "Recife e Pai Edu", "Sindorerê", "Nanaê, Nanã Naiana" e "Conto de Areia". O conteúdo dessas canções, além de trazer a religiosidade de matriz africana de maneira enaltecedora, descrevia a miscigenação entre Brasil e África como algo positivo enriquecedor para a reconfiguração da identidade brasileira. O reconhecimento nacional conquistado pela cantora esta intimamente atrelada a uma exaltação de africanidade dentro da perspectiva da diáspora negra, ou seja, a identidade artística que lhe trouxe o sucesso foi construída com ênfase em práticas culturais de matriz africana.
As lutas antirracistas e práticas culturais de matriz africana foram representadas não apenas nas músicas interpretadas por Clara Nunes, mas em seu trabalho artístico como um todo, pois letra, música e performance estão intimamente entrelaçados, sendo assim, é necessário articulá-los dentro do mesmo contexto. Canto das Três Raças, sucesso da cantora, gravado no ano de 1976, composição de Mauro Duarte e Paulo Cesar Pinheiro, trata da formação cultural do Brasil e seguramente é um hino para o movimento negro na luta antirracista, pois descreve a luta dos povos africanos contra os aviltamentos que vivenciaram durante quase quatro séculos de escravidão e, por último a discriminação racial que ainda está presente no cotidiano da população negra. Para tanto, seguem os versos da canção:
"Ninguém ouviu
Um soluçar de dor
No canto do Brasil
Um lamento triste
Sempre ecoou
Desde que o índio guerreiro
Foi pro cativeiro
E de lá cantou
Negro entoou
Um canto de revolta pelos ares
No Quilombo dos Palmares
Onde se refugiou
Fora a luta dos Inconfidentes
Pela quebra das correntes
Nada adiantou
E de guerra em paz
De paz em guerra
Todo o povo dessa terra
Quando pode cantar
Canta de dor
E ecoa noite e dia
É ensurdecedor
Ai, mas que agonia
O canto do trabalhador
Esse canto que devia
Ser um canto de alegria
Soa apenas como um soluçar de dor".
Nesta composição podemos identificar elementos de uma riqueza imponente para o Ensino de História, não apresenta apenas fatos históricos que envolviam os povos oriundos da África, mas em poucos versos narra vários acontecimentos que marcaram a história de nosso país. Esta canção, escrita durante a ditadura iniciada em 1964, foi usada como protesto, pois difundia a luta pela liberdade. Como a prática de escravidão estava difundida em toda sociedade, não importava a “classe” social, a quantidade de dinheiro e ocupação; não havia grupos que defendiam o fim da escravidão, pelo menos no início da colonização brasileira. Então, seu “soluçar de dor” não era ouvido, no entanto, pode-se observar na letra que “o negro” não passou sempre se lamentando. No início ninguém o ouvia ou importava-se com sua dor, depois ele se fez ouvir, quando “entoou um canto de revolta pelos ares no quilombo dos Palmares”. As formas de resistência das populações africanas e afrodescendentes, as fugas em massa, formação de quilombos, rebeliões e revoltas estão presentes nos versos da canção.
Seguindo ao final da letra da canção, “soa apenas com um soluçar de dor”, que persiste com o canto do trabalhador. Assimila-se que aquela população escravizada lutou pela sua liberdade, transformou-se na população brasileira, que vivendo “de guerra em paz, de paz em guerra” mantiveram sua resistência. Agora trabalhadora, no entanto, vítimas de preconceito étnico racial. Enfim, Canto das três raças, é uma canção que evidencia os desafios da luta antirracista da população afrodescendente, relacionando um passado escravista com um presente não escravo, porém marginalizado, devido o estigma da escravidão que carregam e que sempre a população, por ter o pensamento colonizado por ideais eurocêntricos faz questão de ressaltar.
Com relação à performance de Clara Nunes, quando se apresenta cantando “Canto das três raças”, é composta por movimentos que compõem as danças de origem africana. Mesmo a letra não citando o nome de nenhum Deus do panteão africano da nação iorubana, a dança é a representação dos movimentos feitos pelos filhos de santos quanto incorporam Oxóssi no Candomblé, orixá da força, da luta e do trabalho. Corresponde à nossa necessidade de saúde, nutrição, energia vital e equilíbrio fisiológico, num trabalho constante de crescimento e renovação. Fartura, riqueza, liberdade de expressão são seus pontos marcantes, a imagem que o representa é de um homem indígena de aparência máscula. Oxóssi, é o caçador, por isso porta um arco e fechas. Já no terreiro de Umbanda, vamos observar esses movimentos nas giras ( Nome que dado aos rituais religiosos de Umbanda e Candomblé) de caboclos, entidades (entende-se por entidades uma força transcendente que toma conta - possessão - do corpo do médium. No Candomblé trabalha-se com os orixás, tais como Oxalá, Xangô, Ogum, Oxóssi, Iemanjá, Oxum, Iansã, Exu. Na Umbanda com guias - pessoas que já tiveram uma vida terrena e que ao morrer, o espírito desencarnou e se transformou em guia que trabalha sobre a regência de algum desses orixás - tais como: marujos, caboclos, pretos-velho, baianos, etc...) que pertencem a falange (agrupamentos de espíritos que possuem a mesma energia que Oxóssi) deste orixá.
Outro aspecto importante é a roupa branca, cor da veste utilizada pelos filhos de santo da Umbanda durante o ritual. Os pés descalços também fazem parte do contexto religioso e, os colares no pescoço de Clara Nunes que, na realidade não são simplesmente colares, é um elemento que também é chamado de guia que, servem para proteger os filhos de santo das energias negativas. As cores vão variar de acordo com cada orixá ou entidade. No caso da cantora na maioria das vezes aparecia usando guia de Oxalá, representada pelas contas brancas e a de Iansã que se apresenta com contas de cores vermelha, amarela e branca.
Algo que também chama a atenção são os cabelos de Clara Nunes, que antes de se consagrar no samba apresentava-se liso e quase sempre amarrado, agora como cantora reconhecida como a “deusa dos orixás”, suas madeixas aparecem com bastante volume e sempre solto. Considerando toda a indumentária artística, essa mudança nos cabelos traz como objetivo ressaltar e enaltecer a negritude, em outras palavras, transparecer uma origem africana.
Clara Nunes quando era questionada sobre "Canto das três raças", dizia: “penso que a música não tem fronteira, é universal, a música é sentimento é amor, e não precisa entender o idioma que eu esteja cantando, o importante é a emoção. Tem uma música que eu canto que se chama canto das três raças, eu gosto muito dessa música, porque ela resume toda a formação da música popular brasileira que foi a junção das três raças, do índio, do negro e do branco que formou o brasileiro e a música popular brasileira que fala de sentimento, de amor e de alegria".
Fugindo dos padrões tradicionais das demais cantoras de samba da época, Clara Nunes não apenas cantou sambas exaltando a religiosidade de matriz africana, e algumas músicas que também apresentavam versos que evidenciavam as lutas antirracistas do movimento negro da década de 1970. A cantora sempre que aparecia em público estava caracterizada com as vestimentas dos filhos de santo da Umbanda, além da performance desenvolvida que estava atrelada as danças de origem africana ou movimentos específicos dos orixás. Portanto, a cantora é considerada uma das maiores propagadoras da cultura afrodescendente na década de 1970, de certa forma conseguiu através dos sambas que cantava tirar a religiosidade de matriz africana do campo marginalizado, dando visibilidade para a Umbanda e o Candomblé em todos os meios sociais, em outras palavras, mesmo aqueles que não frequentavam terreiros puderam conhecer alguns elementos que compõem o universo religioso de origem africana.
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