AUTO DE NATAL "MORTE E VIDA SEVERINA"

(Mensagem de Natal para a reflexão sobre o verdadeiro sentido da data. Leiam calmamente cada trecho que escolhi do livro e reflitam como nascem em todos os cantos do Brasil um menino Jesus diariamente apesar dos desafios da vida. Natal é a celebração do recomeçar do ciclo da vida com novas esperanças!)

Por JOÃO CABRAL DE MELO NETO
(1) APROXIMA-SE DO RETIRANTE O MORADOR DE UM DOS MOCAMBOS QUE EXISTEM ENTRE O CAIS E A ÁGUA DO RIO:
Severino, retirante, o meu amigo é bem moço; sei que a miséria é mar largo, não é como qualquer poço: mas sei que para cruzá-la vale bem qualquer esforço.
— Seu José, mestre carpina, e quando é fundo o perau? Quando a força que morreu nem tem onde se enterrar, por que ao puxão das águas não é melhor se entregar?
— Severino, retirante, o mar de nossa conversa precisa ser combatido, sempre, de qualquer maneira, porque senão ele alarga e devasta a terra inteira.
— Seu José, mestre carpina, e em que nos faz diferença que como frieira se alastre, ou como rio na cheia, se acabamos naufragados num braço do mar miséria?
— Severino, retirante, muita diferença faz entre lutar com as mãos e abandoná-las para trás, porque ao menos esse mar não pode adiantar-se mais.
— Seu José, mestre carpina, e que diferença faz que esse oceano vazio cresça ou não seus cabedais se nenhuma ponte mesmo é de vencê-lo capaz?
— Seu José, mestre carpina, que lhe pergunte permita: há muito no lamaçal apodrece a sua vida? E a vida que tem vivido foi sempre comprada à vista?
— Severino, retirante, sou de Nazaré da Mata, mas tanto lá como aqui jamais me fiaram nada: a vida de cada dia, cada dia hei de comprá-la.
— Seu José, mestre carpina, que diferença faria se em vez de continuar tomasse a melhor saída: a de saltar, numa noite, fora da ponte e da vida?

(2) UMA MULHER, DA PORTA DE ONDE SAIU O HOMEM, ANUNCIA-LHE O QUE SE VERÁ:
— Compadre José, compadre, que na relva estais deitado: conversais e não sabeis que vosso filho é chegado? Estais aí conversando em vossa prosa entretida: não sabeis que vosso filho saltou para dentro da vida? Saltou para dento da vida ao dar o primeiro grito; e estais aí conversando; pois sabeis que ele é nascido.

(3) APARECEM E SE APROXIMAM DA CASA DO HOMEM VIZINHOS, AMIGOS, DUAS CIGANAS, ETC:
— Todo o céu e a terra lhe cantam louvor. Foi por ele que a maré esta noite não baixou.
— Foi por ele que a maré fez parar o seu motor: a lama ficou coberta e o mau-cheiro não voou.
— E a alfazema do sargaço, ácida, desinfetante, veio varrer nossas ruas enviada do mar distante.
— E a língua seca de esponja que tem o vento terral veio enxugar a umidade do encharcado lamaçal.
— Todo o céu e a terra lhe cantam louvor e cada casa se torna num mocambo sedutor.
— Cada casebre se torna no mocambo modelar que tanto celebram os sociólogos do lugar.
— E a banda de maruins que toda noite se ouvia por causa dele, esta noite, creio que não irradia.
— E este rio de água, cega, ou baça, de comer terra, que jamais espelha o céu hoje enfeitou-se de estrelas.

(4) COMEÇAM A CHEGAR PESSOAS TRAZENDO PRESENTES PARA O RECÉM-NASCIDO:
— Minha pobreza tal é que não trago presente grande: trago para a mãe caranguejos pescados por esses mangues; mamando leite de lama conservará nosso sangue.
— Minha pobreza tal é que coisa alguma posso ofertar: somente o leite que tenho para meu filho amamentar; aqui todos são irmãos, de leite, de lama, de ar.
— Minha pobreza tal é que não tenho presente melhor: trago este papel de jornal para lhe servir de cobertor; cobrindo-se assim de letras vai um dia ser doutor.
— Minha pobreza tal é que não tenho presente caro: como não posso trazer um olho d'água de Lagoa do Cerro, trago aqui água de Olinda, água da bica do Rosário.
— Minha pobreza tal é que grande coisa não trago: trago este canário da terra que canta sorrindo e de estalo.
— Minha pobreza tal é que minha oferta não é rica trago daquela bolacha d'água que só em Paudalho se fabrica.
— Minha pobreza tal é que melhor presente não tem: dou este boneco de barro de Severino de Tracunhaém.
— Minha pobreza tal é que pouco tenho o que dar: dou da pitu que o pintor Monteiro fabricava em Gravatá.
— Trago abacaxi de Goiana e de todo o Estado rolete de cana.
— Eis ostras chegadas agora, apanhadas no cais da Aurora.
— Eis tamarindos da Jaqueira e jaca da Tamarineira.
— Mangabas do Cajueiro e cajus da Mangabeira.
— Peixe pescado no Passarinho, carne de boi dos Peixinhos.
— Siris apanhados no lamaçal que já no avesso da rua Imperial.
— Mangas compradas nos quintais ricos do Espinheiro e dos Aflitos.
— Goiamuns dados pela gente pobre da Avenida Sul e da Avenida Norte.

(5) FALAM OS VIZINHOS, AMIGOS, PESSOAS QUE VIERAM COM PRESENTES, ETC:
— De sua formosura já venho dizer: é um menino magro, de muito peso não é, mas tem o peso de homem, de obra de ventre de mulher.
— De sua formosura deixai-me que diga: é uma criança pálida, é uma criança franzina, mas tem a marca de homem, marca de humana oficina.
— Sua formosura deixai-me que cante: é um menino guenzo como todos os desses mangues, mas a máquina de homem já bate nele, incessante.
— Sua formosura eis aqui descrita: é uma criança pequena, encrenque e setemesinha, mas as mãos que criam coisas nas suas já se adivinha.
— De sua formosura deixai-me que diga: é belo como o coqueiro que vence a areia marinha.
— De sua formosura deixai-me que diga: belo como o avelós contra o Agreste de cinza.
— De sua formosura deixai-me que diga: belo como a palmatória na caatinga sem saliva.
— De sua formosura deixai-me que diga: é tão belo como um sim numa sala negativa.
— É tão belo como a soca que o canavial multiplica.
— Belo porque é uma porta abrindo-se em mais saídas.
— Belo como a última onda que o fim do mar sempre adia.
— É tão belo como as ondas em sua adição infinita.
— Belo porque tem do novo a surpresa e a alegria.
— Belo como a coisa nova na prateleira até então vazia.
— Como qualquer coisa nova inaugurando o seu dia.
— Ou como o caderno novo quando a gente o principia.
— E belo porque o novo todo o velho contagia.
— Belo porque corrompe com sangue novo a anemia.
— Infecciona a miséria com vida nova e sadia.
— Com oásis, o deserto, com ventos, a calmaria.

(6) O CARPINA FALA COM O RETIRANTE QUE ESTEVE DE FORA SEM TOMAR PARTE DE NADA:
— Severino, retirante, deixe agora que lhe diga: eu não sei bem a resposta da pergunta que fazia, se não vale mais saltar fora da ponte e da vida; nem conheço essa resposta, se quer mesmo que lhe diga é difícil defender, só com palavras, a vida, ainda mais quando ela é esta que vê, Severina, mas se responder não pude à pergunta que fazia, ela, a vida, a respondeu com sua presença viva. E não há melhor resposta que o espetáculo da vida: vê-la desfiar seu fio, que também se chama vida, ver a fábrica que ela mesma, teimosamente, se fabrica, vê-la brotar como há pouco em nova vida explodida; mesmo quando é assim pequena a explosão, como a ocorrida; como a de há pouco, franzina; mesmo quando é a explosão de uma vida Severina.

Referência:
MELO NETO, João Cabral de. Morte e vida Severina: Auto de Natal pernambucano. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2016 (Edição Especial).



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