CARTA-PROTESTO DE SOBRAL PINTO AO PRESIDENTE COSTA E SILVA SOBRE A DECRETAÇÃO DO ATO INSTITUCIONAL N.º 5, DE 13 DE DEZEMBRO DE 1968
Por ADVOGADO HERÁCLITO FONTOURA SOBRAL PINTO
Li, em Goiânia, o ATO INSTITUCIONAL N. 5, que V. Exa., substituindo-se indevidamente ao povo brasileiro, que não conferiu ao Chefe do Estado brasileiro poder constituinte, baixou para tirar as garantias do Poder Judiciário, proibir a concessão de habeas corpus e tornar possível a subtração da liberdade de toda e qualquer pessoa que resida no território nacional, brasileira e estrangeira.
Fui, sou e serei homem do Direito, da Lei, da Justiça e da Ordem. Jamais conspirei e jamais conspirarei. Lutarei, porém, pela palavra, verdadeira, enérgica e vibrante, contra a opressão que desceu sobre a minha Pátria. Palavra franca, leal, desinteressada, que não quer poder, posição e qualquer dignidade, administrativa e eletiva. Quero apenas Ordem Jurídica decente, digna e respeitadora da dignidade da pessoa humana, da liberdade individual e das liberdades públicas, princípios estes que estão varridos, presentemente, da minha Pátria e da Pátria de V. Exa.
A função principal da família e do Governo em todo e qualquer país é formar o caráter de seus membros e de seus cidadãos, respectivamente. Os pais, antes de qualquer dever, têm a obrigação de atuar sobre os seus filhos de modo a que cada um deles seja um homem de caráter. E para que alguém demonstre, no seio de sua Família, que tem caráter, é indispensável que atue de acordo com a convicção que seus pais introduziram no seu espírito, convicção que, para ser respeitada, tem de ser a expressão do amor, do bem e da disposição de sofrer todas as sanções, até mesmo a da morte, para manter íntegros os postulados da referida convicção. O Governo, por sua vez, para que se desobrigue do seu árduo e difícil encargo de dotar cada cidadão com a qualidade de caráter, tem o dever de baixar leis e criar institutos que sejam uma muralha de defesa intransigente do princípio da dignidade da pessoa humana, da intangibilidade da liberdade individual e do resguardo total das liberdades públicas. Se a Família e o Governo não procederem desta maneira, terão falhado completamente à sua missão e terão traído à sua superior finalidade.
V. Exa., baixando o ATO INSTITUCIONAL N. 5, falhou inteiramente à sua missão e traiu de maneira indiscutível a finalidade de Governante do País. Com efeito, atente V. Exa., com serenidade e isenção de espírito, para o que fez com o referido ATO INSTITUCIONAL N. 5: V. Exa. suprimiu, com a liberdade de opinião, também a garantia da Magistratura brasileira. Pouco importa que um cidadão seja honrado, decente e leal. Se ele cair no desagrado dos governantes atuais, porque lhes disse a verdade a que estava obrigado, poderá ir imediatamente para o cárcere, sem que lhe reste meio e modo de readquirir a sua liberdade. Nenhum brasileiro, neste instante, pode revelar-se homem de caráter. Esta revelação provocará nos militares que ocupam o Governo do país a vontade de subtrair a sua liberdade, separando-o da sua família e da sua profissão.
Por outro lado, os Magistrados perderam, pelo ATO INSTITUCIONAL N. 5, todas as suas garantias, o que lhes impedirá de dar qualquer garantia aos seus concidadãos, lesados nos seus direitos fundamentais. O Magistrado que assiste à prisão de um concidadão decente e digno ficará diante deste dilema, quando provocado por um requerimento deste cidadão que não aceita, em silêncio, subtração injusta da sua liberdade: ou obedece às imposições da sua consciência, declarando que a prisão é injusta, mas que não a pode anular, pela suspensão da medida do habeas corpus e, neste caso, será demitido ou aposentado ou, para não perder o lugar que conquistou por concurso ou por suas virtudes excepcionais de cultura e honradez, terá de cruzar os braços diante da injustiça a que está assistindo.
É evidente, Sr. Presidente, que o ATO INSTITUCIONAL N. 5, com as determinações nele contidas, é um Ato governamental que desmoraliza e quebra o caráter do homem brasileiro, principalmente o dos Magistrados. Se este Ato permanecer no nosso Direito, ninguém, nesta amargurada Pátria, ousará contrariar a deliberação e a vontade dos militares das nossas forças armadas e as de V. Exa., porque estará, com a sua resistência, abrindo o caminho que o levará para o cárcere, sem que a Magistratura possa restituir-lhe a liberdade.
O amor que tenho a este País, de que é testemunho toda a minha vida, leva-me a dizer ao Chefe de Estado, que assinou e promulgou o ATO INSTITUCIONAL N. 5, que se V. Exa. tirar do Supremo Tribunal Federal os Ministros que, até agora, honraram, pela sua bravura e pela sua independência, esta instituição, terá firmado o atestado de óbito do Poder Judiciário do Brasil, porque terá estabelecido que a condição para ficar como juiz do mais alto Tribunal do país ou para ser investido nesta superior Dignidade será a de colocar a sua inteligência, a sua cultura e a sua vontade ao serviço dos militares, e, principalmente, ao serviço de V. Exa. e de seus colaboradores no exercício do Poder Executivo.
Reflita, Sr. Presidente: quem sentirá honra e prazer em permanecer no Supremo Tribunal Federal ou para ele entrar depois que V. Exa., com seus poderes ditatoriais, terá arrancado de suas cadeiras juízes que, até agora, procuraram, com os seus votos, resguardar a liberdade de seus concidadãos, ou, conforme o caso, restaurar a daqueles que a tinham perdido ilegalmente? Acredito que V. Exa. encontrará juristas que, fascinados pela sedução que o cargo de Ministro do Supremo Tribunal Federal possa sobre eles exercer, se disponham a aceitar esta investidura, apesar do desprestígio não só do cargo mas também da instituição a que passarão a pertencer: A consciência livre do País, porém, acompanhará, até o final de sua vida, o ato de reprovação geral em que eles terão incorrido pela fraqueza de que deram testemunho.
Sou, Sr. Presidente, uma das vítimas do ATO INSTITUCIONAL N. 5. A Polícia Federal de Goiás, invocando o nome de V. Exa., deu-me ordem de prisão, ordem que não acatei, declarando que nem V. Exa., nem ninguém neste País, é dono da minha pessoa e da minha liberdade. Nada fizera para esta perder: recusava altivamente acatar ordem tão absurda e ilegal. Mal pronunciei estas palavras, quatro homens, de compleição gigantesca, lançaram-se sobre mim, como vespas sobre carniça, imobilizando-me os braços e apertando-me o ventre, pelas costas. Em seguida, empurraram-me, como um autômato, do quarto ao elevador, onde me empurraram. Deste até o carro, que se encontrava à porta do hotel, fizeram idêntica manobra. Colocado no carro, de manga de camisa, como me encontrava no quarto, conduziram-me a um batalhão que fica nos arredores de Goiânia. Neste permaneci durante uma hora, depois de um atrito com um comandante da unidade, que tentava desrespeitar-me, sendo levado ao quartel da Polícia do Exército em Brasília, onde fiquei três dias.
Após três dias de detenção violenta e ilegal, fui chamado à presença do Coronel Rosalvo Janssen, a fim de prestar declarações. Afirmei, categoricamente que não prestaria declaração alguma. Li, nessa oportunidade, a carta que, em 1965, dirigi ao Coronel Gerson de Pinna, da qual destaco para V. Exa. o seguinte trecho: “Como indiciado não devo e, portanto, não posso nem quero comparecer, porque não pratiquei jamais ato ou ação alguma, nem participei nunca, de fatos que devam ou possam ser considerados, neste País, por quem quer que seja, como de natureza criminosa. Nem V. S., nem ninguém nesta terra tem autoridade para imputar-me, acusar-me ou atribuir-me a prática de qualquer crime, seja de que natureza for. Sou cidadão brasileiro, advogado militante e professor universitário que atuou sempre e invariavelmente de maneira ostensiva, aos olhos de todos, autoridades ou não, dentro da Lei, apoiado nela e nos limites dela. A franqueza, o desassombro e a sinceridade são minhas normas indefectíveis. Tenho, neste ponto, a consciência arejada, limpa e tranquila, não havendo ninguém, civil ou militar, que deva ou possa tomar contas de meus atos públicos ou privados, ou a quem deva ou possa prestar as mesmas referidas contas. Minha vida é um livro aberto, cujas páginas podem ser lidas e percorridas de alto a baixo, de frente para trás e de trás para frente, sem receio de alguém, civil ou militar, nela depare, encontre ou tropece em qualquer ato, ação ou fato de natureza criminosa. É, assim, intolerável abuso, que não admitirei se consuma em hipótese alguma, pretender alguém, civil ou militar, envolver-me como indiciado em qualquer IPM sobre atividades subversivas, reais ou supostas, seja do ISEB, seja de qualquer outra instituição, associação ou grupo, civil ou militar. Fica V. S., pois, ciente de que não lhe prestarei, jamais, quaisquer informações como indiciado nas atividades subversivas do ISEB, reais ou supostas”.
Terminada a leitura dos termos desta carta, da qual extraí o trecho acima reproduzido, disse ao Coronel Rosalvo Janssen: “Está encerrado o nosso encontro, e encerrado definitivamente. Não adianta pronunciar mais qualquer palavra”.
Pediu-me então este militar que declarasse eu, por escrito, ao pé do termo de perguntas datilografadas que me apresentara, e que, constava de três ou quatro laudas de papel, as razões da minha resolução. Atendi prontamente ao seu pedido, escrevendo, então, as seguintes palavras que aqui reproduzo: “Sou um cidadão livre, consciente e digno, cuja vida é um livro aberto, que pode ser percorrido de trás para diante e de diante para trás e que não devo contas senão a mim próprio. Não tenho contas a prestar a ninguém. Não pratiquei crime algum. Não podia ser preso. A minha prisão foi violência inominável. É incrível que preso abusiva e ilegalmente em Goiânia, por ordem de autoridades militares, em vez de ser liberado com pedido de desculpas, pela lesão ao meu direito, autoridades superiores do Exército ordenam a oficiais superiores que me perguntem qual a minha posição cívica neste momento. Fui e sou advogado, nunca conspirei, rebelo-me contra esta pretensão, que fere a minha dignidade pessoal e os direitos da minha cidadania. Tudo quanto há em mim de revolta leva-me a não deixar que penetrem no santuário de minha consciência cívica e pessoal. Brasília, Distrito Federal, 17 de dezembro de 1968. Heráclito Fontoura Sobral Pinto, advogado”.
Os afazeres profissionais não me dão lazer para prosseguir na crítica ao ATO INSTITUCIONAL N. 5. Oportunamente voltarei à presença de V. Exa. para formular novas críticas em documento que, como este, não é de natureza privada, uma vez que me reservo o direito de divulgá-lo pelos meios ao meu alcance. Tal divulgação é uma faculdade, que me é assegurada pela Declaração Americana dos Direitos e Deveres Fundamentais do Homem, promulgada em Bogotá, e pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, promulgada pela ONU em Paris. Divulgando estas palavras severas, estou unicamente a cumprir dever inerente à minha condição de membro da Família Humana.
H. Sobral Pinto.
Rio, 21 de dezembro de 1968.
Referência:
PINTO, Heráclito Fontoura Sobral. Carta-Protesto de Sobral Pinto ao Presidente Costa e Silva. In: HABIB, Paulo Paulinelli. O ethos na argumentação: análise discursiva de uma carta-protesto de Sobral Pinto ao Presidente Costa e Silva. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós- Graduação em Estudos Linguísticos da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2008, p. 172-179.