A FOLHA DE SÃO PAULO E O APOIO AO GOLPE MILITAR DE 1964: MÍDIA A FAVOR DA DEMOCRACIA OU DOS INTERESSES DA ELITE REACIONÁRIA E TRADICIONAL BRASILEIRA?

Até que ponto o jornal Folha de São Paulo está preocupado com a manutenção do poder político e econômico da elite histórica brasileira ou critica a atuação do Ministro do STF Alexandre de Moraes sinceramente em nome do "rito formal" de processos legais em nome de "valores democráticos"? Será que realmente o Jornal Folha de São Paulo arrependeu-se de ter apoiado o Golpe de 1964 conforme já afirmou algumas vezes ou trata-se apenas de retórica que muda de acordo com os rumos da política nacional em cada período histórico? O leitor tire as suas conclusões após o texto abaixo.

Fundada em 1920, a Folha de São Paulo passou por uma série de proprietários que deram diferentes orientações ao periódico, mas sempre com uma atuação político-discursiva relevante. Em 1948, José Nabantino, proprietário que antecedeu o grupo Frias-Caldeira, definiu o jornal como “veículo empresarial voltado para a classe média” e lançou o Programa de Ação das Folhas, em que explicitava a intenção do jornal de separar radicalmente opinião de informação. Em 1962, o jornal foi comprado por Octávio Frias de Oliveira e Carlos Caldeira Filho que, ainda no governo de João Goulart, transformaram três edições diárias no principal jornal do grupo, o Folha de São Paulo, que também se tornou um dos jornais da grande imprensa brasileira. Esse foi o início da formação de um grande complexo empresarial, tendo em vista que a lógica empresarial já era dominante.
As direitas conservadoras, o grande empresariado – grupo ao qual a Folha de São Paulo fazia parte e identificava-se – e a oposição viam aquele momento de tensão do governo de Jango como uma tentativa de aproximação do presidente dos preceitos radicais da esquerda comunista. A Folha alinhava-se à grande parte do empresariado nacional, que enxergava o governo de João Goulart como de extrema esquerda e que caminhava para o comunismo.
Para o jornal Folha de São Paulo, 1964 foi inicialmente celebrado e formulado como ocorrência exemplar e positiva, narrado como “Revolução” necessária, imediatamente associada a outros eventos, de forma a conceder-lhe densidade histórica. Em sua primeira fase narrativa - período que vai de 1964 a 1975 -, o acontecimento é celebrado de forma efusiva pelo jornal, como tendo sido o evento marcante que recolocou o País no “rumo” certo como pode ser visto no editorial de 3 de abril de 1964:
"Voltou a nação, felizmente, ao regime de plena legalidade que se achava praticamente suprimido nos últimos tempos do governo do ex-presidente João Goulart. E isso se fez, nota-se, com o mínimo traumatismo, graças ao discernimento de nossas forças armadas para conter os desmandos de um político que, cercado de assessores comunistas, procurava manobrar o país. [...]. Dentro dos quadros da legalidade, confiantes no processo democrático, e esperançosos de que voltem ao bom caminho, os políticos eventualmente desviados das graves responsabilidades que têm perante o povo e a nação, olhemos o futuro com olhos otimistas e digamos com inteira convicção a frase que serviu de título ao suplemento que, quase se diria por uma espécie de premonição, publicamos juntamente com nossa edição do dia 31 do mês passado: O BRASIL CONTINUA".
Nos editoriais dos meses de janeiro, fevereiro e março de 1964, houve uma significativa contribuição do jornal para a desestabilização do governo democrático de Goulart. Os
editoriais desses três primeiros meses utilizaram-se de textos que apontavam os efeitos negativos das ações do Governo de João Goulart, sempre o relacionando com tendências comunistas, e exaltava as Forças Armadas como “núcleos de disciplina” e o seu papel histórico e interventor para a construção da "nossa pátria". Podem-se mencionar os seguintes trechos dos editorais para confirmar o que é argumentado acima:
"Certo é que as Forças Armadas não se prestarão ao papel de demolidoras da democracia, elas que têm sido o baluarte desse regime em nossa pátria. E mais certo ainda é que essas Forças, necessárias para manter a integridade do país e assegurar o respeito à Constituição, não se voltarão contra o povo, cujas tendências e cuja filosofia política são bem conhecidas e profundamente anticomunistas" (Folha de S. Paulo, 17/01/1964).
"A esperança está nos núcleos de disciplina que dificilmente permitirão que se lance na confusão o país já infelicitado por tantas crises. E esses núcleos encontram-se, é óbvio, nas Forças Armadas" (Folha de S. Paulo, 14/02/1964).
De acordo com a Folha de São Paulo, dois problemas do governo de Goulart eram sua ineficiência administrativa e a presença comunista. Para construir discursiva e ideologicamente essas duas questões, o jornal utiliza os termos “subversão”, “desordem”, “radicalizações” e “agitação” sempre relacionados com o perigo e as “atividades comunistas” atribuídas ao governo Goulart:
"O Estado tem sido tantas vezes posto a serviço de interesse dos outros, que ninguém mais acredita em sua recuperação. [...] A luta política fica assim bem caracterizada, onde não se devia cogitar a política partidária, mas o atendimento dos interesses do trabalhador. [...] O governo que aí se acha instalado no poder, fazendo por vezes, mediante alguns de seus porta-vozes, propaganda nitidamente subversiva, é um governo eminentemente trabalhista" (Folha de S. Paulo, 01/03/1964).
"As radicalizações das posições políticas no Brasil estão-se aproximando dos limites sumamente perigosos.[...] Não se podem alimentar ilusões sobre a nociva atividade do comunismo neste país, ou daqueles setores que, a ele aliados, lhe servem aos desígnios [...] Aí está a luta pelas chamadas reformas de base totalmente descaracterizada e transformada em pretexto para agitação e subversão da ordem" (Folha de S. Paulo, 06/03/1964).
A Folha de São Paulo o jornal construía uma noção de identidade coletiva em “as forças democráticas da nação” e “ninguém mais acredita em sua recuperação” ao se referir ao Estado. Além disso, abordava a chamada Marcha da Família com Deus pela Liberdade não como prática social de interesses específicos daqueles que estavam na marcha, mas como de interesse geral, de toda a sociedade, como indicam as expressões “as tradições cívicas do povo brasileiro [de que o paulista é só uma amostra]” e “povo, apenas povo”. Tais fatos podem ser comprovados pelos seguintes trechos dos editorais do periódico:
"Mais vezes merecem críticas os radicalismos de esquerda que os de direita. É que eles são mais agressivos, mais provocadores, mais danosos ao país. [...] A cada dia se tornam mais ousados nos ataques à iniciativa privada, por exemplo, cuja destruição significaria também a ruína do governo democrático" (Folha de S. Paulo, 06/03/1964).
"Poucas vezes ter-se-á visto no Brasil tão grande multidão na rua, para exprimir em ordem um ponto de vista comum, um sentimento que é de todos, como a que ontem encheu o centro da cidade de São Paulo, na “Marcha da Família com Deus e pela Liberdade”. [...] Ali estava o povo mesmo, o povo, povo, constituído pela reunião de todos os grupos que trabalham pela grandeza da pátria, cioso de suas tradições e de suas crenças e consciente de seus destinos democráticos. [...] Aquele mar humano formou-se espontaneamente, pelo natural desembocar de afluentes vários, surgidos dos bairros e do interior, nascidos nas mais diversas fontes" (Folha de S. Paulo, 20/03/1964).
"A lição de tirar do acontecimento é uma só: continuam vivas as tradições cívicas do povo brasileiro, de que o paulista é uma amostra [...] Povo, apenas povo, dissemos num primeiro editorial sobre o assunto, compareceu às ruas para fazer a 'Marcha da Família'"(Folha de S. Paulo, 21/03/1964).
Ao falar em editorial de 8 de abril de 1964 sobre o primeiro presidente pós-Golpe Militar, Humberto de Alencar Castelo Branco, a Folha de São Paulo traz a afirmação de que “o povo” o acolheu e “ninguém” pode admitir o fracasso. Ou seja, era visto pelo jornal como “decepcionante e dificilmente justificável” se o então presidente não trouxesse melhorias na estrutura econômica, política e social do país:
"A confiança popular em melhores dias para o país manifesta-se por diversas maneiras, [...]E com veemência já salientamos que a revolução não pode significar um retrocesso no terreno das conquistas sociais, e das medidas realmente democráticas e em favor do povo acaso já adotadas. É essa a expectativa geral. Não falta confiança. O desaponto seria irremediável se deixassem a perder perspectivas tão promissoras (Folha de S. Paulo, 08/04/1964).
Na história recente, a Folha de São Paulo tenta apagar o seu passado obscuro de apoio ao Golpe de 1964 e à ditadura até fins da década de 1970 sob o argumento de que não havia muito a fazer naquele período diante da censura, tampouco clareza frente ao episódio deflagrado em 1964 - golpe, revolução?:
"A Folha apoiou a deposição de João Goulart, mas não participou de nenhuma conspiração. [...]. Quando os militares tomaram o poder, a Folha tinha dois colunistas políticos (além de Hermano Alves, D’Alembert Jaccoud escrevia de Brasília). Na página 4, ao lado dos editoriais, revezavam-se Cecília Meirelles e Carlos Heitor Cony. Nos anos seguintes, o jornal se pautaria por uma preocupação, a retomada da agenda democrática, antecipada na manchete de 3 de abril de 1964: "Lacerda propõe: eleição já do novo presidente" (MAGALHÃES, Mario. Folha apoiou o regime de 64, mas se engajou na redemocratização nos anos 70. Folha de São Paulo, 2001).
Tratava-se de uma estratégia de esquecimento a partir de uma nova leitura sobre os episódios desencadeados naqueles dias e na formulação de uma nova identidade para o grupo. O passado é reconfigurado para produzir um afastamento quase cirúrgico do jornal em relação ao evento e aos militares. Ao fazer isso, realiza uma clara seleção dos elementos, de maneira a fazer crer que nunca houve um apoio efetivo do jornal aos acontecimentos de 1964.
Se no final dos anos setenta o que impulsionava as ações era o debate sobre a abertura, a partir dos anos 80 a Folha de São Paulo passou a realizar uma política pública de esquecimento por substituição de eventos, quando são introduzidos outros episódios que acabam por eclipsar, quase totalmente, a relação da Folha com os acontecimentos de 1964 – dentre eles, a abertura política e a campanha das Diretas. Assim, realizou um esquecimento administrado pela formulação de uma nova memória – a partir de uma insistente campanha de autopromoção como democrático, plural e apartidário.
Nos dias atuais a Folha de São Paulo tenta se isentar de participação nas tragédias da Ditadura Militar. Contudo, além de não poder escapar de uma reflexão sobre o fracasso da política social e econômica dos anos da ditadura, o jornal tem ainda que “abrandar” sua atuação nesse período. Necessita se equilibrar entre uma memória que o vincula diretamente aos militares e um trabalho de esquecimento que lhe possibilite tornar-se porta-voz da "democracia".
O jornal Folha de São Paulo lança mão de uma estratégia de esquecimento comandado sobre sua atuação relativamente ao Golpe de 1964. Sob vários aspectos, o acontecimento midiático e histórico no qual se configurou o Golpe de 1964 serve para ajudar a entender o que o jornal Folha de São Paulo é hoje. A Folha de São Paulo almeja um trabalho de esquecimento comandado, que se organiza não pela destruição dos rastros do passado, mas por uma memória encobridora, uma ação forte de reformulação identitária que alça o jornal ao primeiro plano dos debates políticos do país.
Referências:
MENESES, Sônia. Ditadura, Democracia e Esquecimento: 1964 - o acontecimento recalcado e a ascensão do Jornal Folha de São Paulo como canal da democracia. Tempo e Argumento, v. 5, n. 10, Florianópolis, 2013. Disponível em: <https://revistas.udesc.br/.../view/2175180305102013039/2865>.
SANTOS, Cynthia Adrielle da Silva; COSTA, Alessandra. Empresas e ditadura civil-militar brasileira: os editoriais do jornal Folha de S. Paulo em uma perspectiva histórica. Cadernos EBAPE, n. 5, Rio de Janeiro, Set./Out. 2022. Disponível em: <https://www.scielo.br/j/cebape/a/mCfgFJtnKsWjZCTmdmcJ7bh/...>.



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