A VERDADEIRA FACE DE DELFIM NETTO QUE GRANDE PARTE DA MÍDIA BRASILEIRA TENTA ESCONDER
(Reflexão: Faleceu em 2024 o último "entulho" histórico do Ato Institucional N.º 5 da Ditadura Militar Brasileira)
Antônio Delfim Netto, economista formado pela USP em 1951, foi ministro da Fazenda dos governos militares de Costa e Silva (1967-1969) e Médici (1969-1973), e ministro da Agricultura do governo Figueiredo (1979-1984), gestão durante a qual também foi secretário do Planejamento, controlando o Conselho Monetário Nacional e o Banco Central. Além disso, foi integrante do Conselho Consultivo de Planejamento do governo Castelo Branco (1964-1967).
1. Delfim Neto e o Ato Institucional N.º 5 de 1968:
Delfim foi um dos signatários do Ato Institucional Nº 5, de dezembro de 1968, que endureceu o regime militar e permitiu a perseguição a rivais políticos do governo. O período ficou conhecido como o mais sangrento da ditadura militar no Brasil. O AI-5, entre outras arbitrariedades, suspendeu as atividades do Congresso, cassou mandatos parlamentares e suspendeu os direitos políticos.
O encontro aconteceu em 13 de dezembro de 1968, no Palácio das Laranjeiras, no Rio. Foi uma reunião do Conselho de Segurança Nacional, convocada por Artur da Costa e Silva. Durante a reunião, admitiu-se que o regime seria ditatorial.
De acordo com o livro "A ditadura Envergonhada" (Companhia das Letras), do jornalista Elio Gaspari, naquela reunião o jovem ministro da Fazenda, então com 40 anos, "pisou no acelerador". "Queria que a concentração de poderes pedida por Costa e Silva desse ao governo mão livre para legislar sobre matéria econômica e tributária", descreve Gaspari no capítulo intitulado "A Missa Negra", em que narra detalhes da reunião que sacramentou o AI-5 .
Delfim Netto, então, apoiou a decisão - e deixou no ar que ainda a considerava branda: "Estou plenamente de acordo com a proposição que está sendo analisada no conselho. E, se você excelência me permitisse, direi mesmo que creio que ela não é suficiente". Depois de afirmar aos presentes que estava plenamente de acordo com a proposição que estava em análise, ele acrescentaria dirigindo-se a Costa e Silva: "Eu acredito que deveríamos atentar e deveríamos dar a Vossa Excelência a possibilidade de realizar certas mudanças constitucionais que são absolutamente necessárias para que este país possa realizar o seu desenvolvimento com maior rapidez".
Em 2013, em depoimento à Comissão da Verdade, declarou que não se arrependia da decisão: "Se as condições fossem as mesmas e o futuro não fosse opaco, eu repetiria". Continuou com a mesma posição pelos anos seguintes. "Eu voltaria a assinar o AI-5. Eu tenho dito isso sempre. Aquilo era um processo revolucionário, vocês têm que ler jornais daquele momento. As pessoas não conhecem história, ficam julgando o passado, como se fosse o presente. Naquele instante foi correto, só que você não conhece o futuro", disse Delfim. O papel de Delfim foi crucial para a aprovação do AI-5. Foi Delfim Netto que trouxe a um Costa e Silva ainda hesitante a garantia de que o AI-5 não encontraria oposição entre o empresariado.
Sobre a tortura do regime, Delfim disse seguidas vezes que nunca ouviu nada sobre abusos, mesmo ocupando um cargo de destaque no regime. "Uma vez perguntei ao presidente Médici se havia tortura. Ele me disse que não. Nós ouvimos, como todos, coisas aqui e ali. Acreditei nele. Confiei porque era um sujeito correto, decente", disse ao jornal O Globo em 2014.
2. Delfim Netto e a Operação Bandeirante:
Segundo o jornalista Elio Gaspari, Delfim também pediu contribuições de empresários paulistas durante um encontro para ajudar a financiar a Operação Bandeirante (Oban), um aparelho de repressão montado pelo Exército e responsável por torturas. A Oban foi responsável por diversas ações ilegais contra militantes políticos, como sequestro, tortura, morte e desaparecimento político.
3. Delfim Netto e o fracassado projeto do milagre econômico da Ditadura Militar:
Sua gestão no Ministério da Fazenda foi marcada por um período de desenvolvimento econômico internacional, com muita facilidade de empréstimos, que no Brasil ficou conhecido como os anos do “milagre econômico”. Entre 1968 e 1973, o país vivenciou um crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) de em média 11%, queda da inflação e aumento do poder aquisitivo do empresariado e da classe média, fator que possibilitou o aumento do consumo e da produção de bens duráveis, especialmente eletrodomésticos e automóveis.
No final desse período, no entanto, com a volta da inflação, a dívida externa brasileira triplicou entre 1967 e 1972 e a concentração de renda se agravou, prejudicando a camada mais pobre da população. Vem de Delfim a ideia de que era preciso “fazer o bolo crescer para depois dividi-lo”. Tal divisão, no entanto, ficou só na receita. O “milagre” fez o Brasil crescer, mas não contribuiu para mitigar a profunda desigualdade social e em boa medida teve como base o aumento da capacidade de consumo das classes altas, o arrocho do salário mínimo e a perda da capacidade de compra do trabalhador.
O bolo cresceu, como dizia o Delfim, mas ele não foi repartido, ou foi repartido de maneira muito desigual. O objetivo era industrializar o país, fazer o país crescer, mas não tinha uma política de redistribuição de renda. as políticas implementadas em 1968 impuseram o congelamento do salário mínimo, quer dizer, do represamento dos repasses inflacionários, da indexação inflacionária para o salário mínimo, que representou uma queda real de cerca de 50% do salário mínimo. Além do fechamento dos sindicatos, perseguição das lideranças sindicais; tudo isso enfraqueceu a capacidade combativa, a capacidade de barganha do trabalho frente ao capital.
A dívida externa ainda aumentou quase quatro vezes durante o regime militar, saindo de 15,7% do PIB em 1964 para 54% em 1984 e que, depois do “milagre” — mas não apenas por causa dessa política — a inflação explodiu nos anos 1980 e o crescimento se estagnou.
Ao assumir a Secretaria de Planejamento, em 1979, as condições da economia já não eram tão favoráveis. Os últimos anos da ditadura ficaram marcados pelo declínio da economia brasileira e pela explosão da dívida externa. Em 1983, Delfim conseguiu um empréstimo de U$ 6,5 bilhões do Fundo Monetário Internacional (FMI).
4. Delfim Netto sendo a caricatura do pensamento da elite retrógrada brasileira ("Empregadas domésticas como animais em extinção"):
Em 4 de março de 2011, em entrevista ao programa "Canal Livre" da TV Bandeirantes, ao falar sobre mudanças na economia brasileira, ascensão social e profissões que estão deixando de existir, Delfim Netto citou as empregadas domésticas e as comparou com animais em extinção: "Quem teve esse animal, teve. Quem não teve nunca mais vai ter".
A declaração do economista e ex-ministro evidenciou o quanto estamos distante do conceito de igualdade, aqui compreendida em todos seus aspectos. Delfim Netto personalizou o pensamento persistente de um Brasil colonial, que enxergava negras e negros como seres inferiores, feitos para servir a uma elite branca. Séculos nos distanciam daquele período, mas a fala do ex-ministro demonstrou que essa cultura escravocrata permanece, lamentavelmente, até os dias atuais.
Mais do que uma afirmação infeliz, a comparação demonstrou o total desrespeito, a desvalorização e a invisibilidade, além do desconhecimento sobre a realidade da valorosa atividade das quase sete milhões de mulheres trabalhadoras domésticas. No Brasil, o trabalho doméstico é a ocupação que agrega o maior numero de mulheres, 15,8% do total da ocupação feminina, de acordo com dados disponibilizados pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios do IBGE. E a maioria dessa categoria é formada por mulheres, sobretudo negras. Desse total, 73,2% não têm carteira assinada e, por conseguinte, não contam com qualquer amparo trabalhista e previdenciário previstos para todas trabalhadoras e trabalhadores.
A informalidade acarreta uma série de violações de direitos, como carga horária bem acima do limite legal, excesso de horas trabalhadas sem remuneração extra, salários abaixo do mínimo estabelecido, entre outros. As declarações de Delfim Netto expuseram a face perversa do racismo, do preconceito e o pressuposto de que as pessoas são diferentes e que, portanto, são ou não merecedoras de direitos. Por essa visão, existem os animais e seus "donos". Identificar os discursos que perpetuam a cultura da desigualdade significa combater a violência dissimulada e a mais explícita, que impedem os avanços sociais, o reconhecimento da cidadania, do tratamento igualitário para todas e todos e, por decorrência, da democracia.
Este é o personagem, ou melhor, o "entulho" histórico da Ditadura Militar Brasileira que a imprensa exalta como um "grande economista" e "intelectual" brasileiro, quase um mecenas por ter contribuído para grande parte do acervo da biblioteca da USP através de emendas parlamentares (como se não fosse uma obrigação de qualquer parlamentar decente em um país sério destinar recursos públicos - nem se trata de pessoais- para a educação pública. É a mesma imprensa que critica ditaduras na Venezuela, Nicarágua, Coréia do Norte, Rússia, Irã e outros países, mas que "passa pano" para os personagens autoritários, preconceituosos, violadores de direitos fundamentais e apoiadores de ditadura dentro do seu próprio país. Delfim Netto definitivamente deixará saudades apenas para as "viúvas" saudosistas da extrema direita e os ignorantes que, propositalmente ou não, desconhecem as consequências maléficas da Ditadura Militar de 1964 a 1985 para o Brasil até os dias atuais.
Referências:
FONTENELLE, Francisco Moacir Méier. Delfim Netto. In: Biografias da Ditadura que disseram sim. Memórias da Ditadura. São Paulo: Instituto Vladimir Herzog, 2013. Disponível em: <https://memoriasdaditadura.org.br/personagens/delfim-netto/>.
GASPARI, Elio. A ditadura envergonhada: As ilusões armadas. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014 (Coleção Ditadura Livro 1).
LOPES, Iriny. O ex-ministro e a senzala. In: Formação FPA. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 13 de abril de 2011. Disponível em: <https://fpabramo.org.br/.../04/13/o-ex-ministro-e-a-senzala/>.