PERSONALIDADE AUTORITÁRIA E MANIPULAÇÃO DE MASSAS

(Para a reflexão sobre a vitória de Donald Trump nas eleições estadunidenses de 2024 e o avanço da extrema direita e das suas ideias autoritárias/autocráticas no mundo atual, utilizando-se da manipulação das massas e das instituições e dos instrumentos legais do próprio Estado Democrático, minando-o por dentro como um "câncer")

Por THEODOR W. ADORNO

1. Sobre as técnicas do agitador fascista e a personalidade de seus seguidores:

Os conceitos de liderança e ação democrática estão tão profundamente envolvidos na dinâmica da moderna sociedade de massa que seu sentido não pode mais ser aceito como dado na presente situação. Em contraste com os príncipes e senhores feudais, a ideia do líder emergiu com a ascensão da democracia moderna. Relacionava-se então com a eleição, pelos partidos políticos, daqueles a quem eles delegavam a autoridade de falar e agir em seu favor e que, ao mesmo tempo, supunham qualificados para guiar o homem comum através da argumentação racional.
Desde a famosa "Sociologia dos partidos políticos" de Robert Michels, que não é mais assim: a ciência política demonstrou que essa concepção clássica, rousseauniana, não correspondia mais à realidade. Através de diversos processos, como o enorme crescimento numérico dos partidos modernos, sua dependência a concentradíssimos interesses disfarçados e, enfim, à sua própria institucionalização, o verdadeiro funcionamento democrático da liderança, até o ponto em que ele de fato foi alcançado na realidade, havia desvanecido.
Não obstante o fato de que em decisões importantes a democracia de base, como oposição à opinião pública oficial, vez por outra ainda mostre surpreendente vitalidade, a interação entre partido e liderança tornou-se mais e mais limitada a manifestações abstratas da vontade da maioria através de votações e os mecanismos dessas últimas, em grande parte sujeitos ao controle das lideranças estabelecidas.
A liderança tornou-se em si mesma cada vez mais rígida e autônoma, perdendo, na grande maioria das vezes, contato com as pessoas. Concomitantemente, o impacto da liderança sobre as massas deixou de ser de todo racional, passando a revelar claramente alguns dos traços autoritários que sempre estão latentes onde o poder é controlado por uns poucos. As figuras ocas e infladas de líderes como Hitler e Mussolini, investidas de um falso “carisma”, são as últimas beneficiárias dessas mudanças societárias ocorridas dentro da estrutura de liderança. Trata-se de mudanças que também afetam profundamente as próprias massas. Quando as pessoas sentem que realmente não estão em condições de determinar seu próprio destino, como aconteceu na Europa; quando se desiludem a respeito da autenticidade e efetividade dos processos políticos democráticos; então, elas são tentadas a entregar a substância da autodeterminação democrática e arriscar sua sorte com aqueles que eles ao menos consideram poderosos: seus líderes.
Freud em "Psicologia de grupo e análise do ego" descreveu as organizações hierárquicas, como exércitos e igrejas, em termos de mecanismos de identificação e introjeção autoritários que podem se impor sobre grande número de pessoas, sem exceção dos grupos cuja essência é o antiautoritarismo, como são, antes de mais nada, os partidos políticos. Embora aparentemente distante agora, esse perigo é a contrapartida dos procedimentos com os quais uma liderança procura se autoperpetuar. A observação geralmente feita de que, hoje, a democracia fomenta os movimentos e forças antidemocráticas é um dos mais claros sinais de manifestação desse perigo.
Em função disso, é preciso dar um sentido mais concreto às ideias de democracia e liderança, se é para prevenir sua transformação em meras palavras, quando não em disfarces de situações totalmente opostas às indicadas por seu significado. O conhecimento de que a maioria das pessoas frequentemente age de maneira cega e de acordo com a vontade de figuras demagógicas ou instituições poderosas, contrariando ao mesmo tempo os princípios básicos da democracia e de seu próprio interesse racional, atravessa todos os tempos. Apareceu muito tempo antes de Ibsen torná-la a tese de seu "O inimigo do povo"; na realidade, desde que o problema da oclocracia surgiu pela primeira vez na antiga Grécia.
Aplicar a ideia de democracia de maneira meramente formalista, aceitar a vontade da maioria per se, sem considerar o conteúdo das decisões democráticas, pode levar à completa perversão da democracia e, derradeiramente, à sua abolição. Hoje mais do que nunca, é função da liderança democrática tornar os seus sujeitos, o povo, conscientes de seus próprios desejos e necessidades contra as ideologias que são marteladas em suas cabeças pelos inumeráveis canais de comunicação dos interesses disfarçados. As pessoas precisam entender que aqueles princípios democráticos, uma vez violados, impedem o exercício de seus próprios direitos e podem fazê-las passar de sujeitos autodeterminados a objetos das mais obscuras manobras políticas.
Numa era como a nossa, quando o feitiço de uma cultura de massas controladora do pensamento se tornou quase universal, esse postulado, portador do melhor do senso comum, parece utópico. Certamente seria idealismo ingênuo presumir que uma coisa assim possa ser alcançada apenas através de meios intelectuais. A consciência e a inconsciência das massas têm sido condicionadas pelos poderes existentes em tal extensão que não basta apenas “dar-lhes os fatos”. Paralelamente, porém, ocorre que o progresso tecnológico tornou as pessoas tão “racionais”, céticas, alertas e resistentes contra todos os tipos de contrafação que não pode haver dúvida a respeito da existência de fortes contratendências aos penetrantes padrões ideológicos existentes em nosso ambiente cultural. Acontece muitas vezes de as pessoas se conservarem indiferentes mesmo diante da mais intensa pressão propagandística, se estão em jogo questões importantes. O esclarecimento democrático tem de se apoiar nessas contratendências e essas, por sua vez, devem se basear em todos os recursos do conhecimento científico a nós disponíveis.
As tentativas nessa direção podem ter um ponto de apoio profundo na própria ideia de liderança, mas, para tanto, seria preciso fazer um desmascaramento sem medo do tipo de liderança promovido por toda parte pela moderna sociedade de massa, na medida em que ele fortalece uma transferência irracional ou identificação inconciliáveis com a autonomia intelectual, núcleo do ideal democrático. Outrossim, o esclarecimento democrático deve impor umas exigências muito definidas à liderança democrática. Na hipótese de desejar ela construir tendências objetivas e progressistas dentro da mente das massas, isso não pode significar, sequer em imaginação, que ela venha a fazer uso dessas tendências; que, sob o pretexto de favorecer metas democráticas e através da exploração ardilosa de sua mentalidade, ele deva manipular as massas. Ao invés de uma escravização adicional, o que é preciso [agora] é a emancipação da consciência.
O verdadeiro líder democrático, que é mais do que um mero expoente dos interesses políticos da ideologia liberal, necessariamente teria de se abster de qualquer especulação “psicotécnica”, de qualquer tentativa para influenciar as massas ou grupos de pessoas através de meios irracionais. Sob nenhuma circunstância ele deve tratar os sujeitos da ação política e social como meros objetos a quem uma ideia é vendida, pois essa atitude geraria uma inconsistência entre fins e meios que poderia não apenas prejudicar toda a sinceridade da sua aproximação como destruir suas convicções interiores. Pragmaticamente uma tentativa como essa se esgotaria na habilidade daqueles que pensam e agem apenas em termos de poder, que são amplamente indiferentes à validade objetiva de uma ideia e que, desembaraçados das “ilusões humanitárias”, subscrevem como um todo a atitude cínica de considerar os seres humanos como matéria bruta passível de ser moldada à vontade.
Durante a crise da República de Weimar, por exemplo, o Reichsbanner Schwarz-Rot-Gold, uma organização liberal progressista bastante numerosa, tentou se contrapor ao esquema de emprego racional de estímulos de propaganda irracional dos nazistas introduzindo outros símbolos. Contra a Swastika, eles criaram as três flechas. Contra o grito de guerra Heil Hitler, o Frei Heil, mais tarde alterado para Freiheit. O fato de que esses símbolos muito mal misturados da democracia alemã não eram sequer conhecidos no país serve de evidência do seu completo fracasso. Foi fácil para a máquina de Goebbels ridicularizá-los. Inconscientemente, as massas perceberam muito bem que esse tipo de contrapropaganda era mera tentativa de roubar uma folha do livro nazista; que, como tal, ela era inferior e que, de certo modo, o próprio ato de emulação em que se baseava era sinal de derrota.

2. Esclarecimento democrático versus propaganda fascista:

Cremos que não é ousadia demais aplicar a lição dessa experiência à nossa própria cena. A tarefa da liderança democrática, até onde mostra preocupação com a relação das massas com a democracia, não deveria ser fazer uma propaganda melhor e mais abrangente, mas se esforçar para superar o espírito da propaganda através da adesão ao princípio da verdade. Lutando contra Hitler, a liderança aliada acabou reconhecendo esse princípio e fez frente à propaganda doméstica alemã apenas com a exposição dos fatos. Este procedimento não somente provou ser moralmente superior à técnica dos cérebros da propaganda nazista como se mostrou efetivo, ao ganhar a confiança da população alemã.
Reverter a esse princípio todavia envolve um problema da mais alta seriedade. Sempre que afirmada abstratamente, a postulação de sinceridade incondicional soa com uma tentativa de apaziguamento que lembra a da inocência infantil, uma ideia que costuma ser feita em pedaços pelos expoentes da Realpolitik, acima de todos, pelo próprio Hitler. Para conquistar o apoio das massas, reza sua argumentação, há que tomá-las como são, e não como se deseja que sejam. Noutras palavras, é preciso mexer com sua psicologia: é inútil difundir a verdade objetiva sem uma avaliação dos sujeitos a quem é direcionada. Considerando que ela pode ultrapassar sua compreensão, pode ocorrer de ela jamais chegar até eles e, assim, ser completamente ineficiente.
De acordo com o raciocínio de Hitler, a propaganda tem se ajustar ao mais estúpido entre aqueles a quem ela se dirige; ela não deve ser racional mas emocional. Trata-se de uma fórmula que provou ser tão bem-sucedida que evitá-la parece levar a uma situação inviável. A própria eficácia da princípio de verdade da propaganda de guerra aliada, arguir-se-ia nessa linha, poderia ter sido produto de meras condições psicológicas: a verdade só se tornou aceitável e sedutora atendendo a uma necessidade que só surgiu depois de serem quebrados o sistema de mentira total goebbelsiano e as promessas de uma guerra curta e de proteção da terra natal contra os ataques aéreos feita pelos nazistas.
Por outro lado, nenhuma análise comedida poderia deixar de constatar que a própria propaganda é fortemente libidinosa. Numa cultura de negócios na qual a publicidade se tornou uma instituição pública de dimensões assustadoras, as pessoas realmente se encontram ligadas não apenas aos conteúdos mas aos próprios mecanismos da propaganda. Por mais vicária ou mesmo espúria que possa ser, a propaganda moderna é em si mesma uma fonte de gratificação.
A renúncia à propaganda requereria pois uma renúncia instintiva por parte das massas que a ela estão expostas, e isso é algo que tem a ver não apenas com a beleza de cozinha com que está associada “sua sopa favorita”, mas, em um sentido profundo mais efetivo e sutil, à própria propaganda política. Os campeões da propaganda fascista, por exemplo, lograram desenvolver um ritual que, para seus aderentes, ocupa um lugar muito mais amplo que qualquer programa político bem desenhado.
Para o observador superficial, a esfera política parece pois destinada a ser monopolizada pelos ardilosos homens de propaganda: a política é vista por um vasto número de pessoas como um campo para iniciados, senão de politiqueiros e chefes de máquinas partidárias. O problema é que, quanto menos as pessoas acreditam na integridade política, mais facilmente podem cair nas mãos dos políticos que vociferam contra os políticos. Enquanto o princípio de verdade e seus processos intrinsecamente racionais exigem um certo esforço intelectual que provavelmente não atrairá muitos amigos, a propaganda em geral e a fascista em particular estão inteiramente adaptadas à chamada linha de menor resistência.
O princípio da verdade continuará sendo, portanto, uma afirmação escorregadia, a menos que seja formulado mais concretamente. Nesse caso, as tarefas seriam duas. Primeiro, seria preciso descobrir uma abordagem que não faça a menor concessão àquelas aberrações que são quase inevitáveis, sempre que as comunicações são adaptadas a seus consumidores potenciais. Conjuntamente, ter-se-ia de passar pelas barreiras da inércia, da resistência e dos padrões de comportamento mental condicionados. Para os que lamentam a imaturidade das massas tudo isso pode parecer uma empresa sem esperança. Entretanto, o argumento segundo o qual as pessoas têm de ser tomadas como de fato são é apenas meia verdade; ele passa por alto algo que ainda está muito vivo, o potencial de autonomia e espontaneidade das massas. É impossível dizer se o tipo de abordagem proposto aqui eventualmente terá sucesso, e a razão por que ele jamais foi testado em larga escala deve ser procurada no próprio sistema [social] dominante. A despeito disso, é essencial que ele deva ser testado.
Como primeiro passo, as comunicações deveriam se comprometer com a verdade e tentar se desenvolver no sentido da superação dos fatores subjetivos que tornam a verdade inaceitável. O estágio psicológico da comunicação [da liderança democrática], não menos do que seu conteúdo, deveria respeitar o princípio da verdade. Embora o elemento irracional tenha de ser devidamente considerado, não deve ser aceito como dado mas, antes, como algo que deve ser atacado com e pelo esclarecimento. A integridade factual e objetiva deveria ser combinada com o esforço para promover o discernimento das disposições irracionais que dificultam o julgamento racional e autônomo por parte das pessoas.
A verdade a ser difundida pela liderança democrática precisa ser relacionada a certos fatos que costumam ser obscurecidos por distorções arbitrárias e, em muitos casos, pelo próprio espírito de nossa cultura. Seu objetivo é estimular a autorreflexão naqueles que desejamos ver livres das garras do condicionamento todo-poderoso. Trata-se de metas que se justificam sobretudo se levarmos em conta que dificilmente pode haver dúvida de que há uma interação íntima entre ambos os fatores: as ilusões da ideologia antidemocrática e a ausência de introspecção (devida em grande parte aos mecanismos de defesa).
Visando ser eficiente, nossa abordagem pressupõe um amplo conhecimento da natureza e conteúdo dos estímulos antidemocráticos aos quais as massas estão expostas na atualidade. Requer conhecimento das necessidades e anseios que fazem as massas sensíveis a esses estímulos. Obviamente, os principais esforços da liderança democrática deveriam ser direcionados àqueles pontos onde as disposições subjetivas e os estímulos antidemocráticos coincidem.
O Instituto de Pesquisa Social examinou, no tocante aos estímulos, as técnicas dos agitadores fascistas norte-americanos, tipificados por suas abertas simpatias por Hitler e a Alemanha nazista. Esses estudos mostraram claramente que os agitadores fascistas americanos seguem um modelo rígido e altamente padronizado que se baseia quase inteiramente em seu conteúdo psicológico. Não há programas políticos positivos. Recomendam-se apenas medidas negativas, sobretudo contra as minorias, dado que servem de escoadouro para a agressividade e a fúria de seus sentimentos reprimidos.
A totalidade dos discursos dos agitadores, monotonamente similares uns aos outros, representa antes de mais nada uma performance com o propósito imediato de criar a atmosfera desejada. Enquanto a superfície pseudopatriótica dessas comunicações é uma mistura de trivialidades pomposas e mentiras absurdas, seu sentido subjacente apela para os anseios secretos da audiência: elas irradiam destruição. A convergência entre esses homens que sonham em ser o Führer e seus potenciais seguidores descansa no sentido oculto que, através de repetição incessante, é martelado na cabeça desses últimos. Os conteúdos ideacionais das falas e panfletos desses agitadores podem ser reduzidos a um pequeno número – não mais que vinte – de expedientes mecanicamente aplicados. O agitador não espera que a audiência se aborreça pela constante repetição desses expedientes e slogans batidos. Acredita que é a pobreza intelectual de seu quadro de referência que fornece o halo de autoevidência, senão uma atração peculiar, àqueles que sabem o que podem esperar para si mesmos, da mesma forma como as crianças desfrutam da repetição literal e interminável de uma mesma história ou cançoneta.

3. O "caráter" fascista:

A técnica muito geral de repetir sem parar certas fórmulas rígidas, empregada pelos agitadores, se harmoniza com a inclinação compulsiva para pensar de maneira rígida e estereotipada da personalidade fascista. Para a personalidade fascista tanto quanto para seu líder potencial, o indivíduo é mero espécime de seu tipo. É isso que, em parte, dá conta da divisão fixa e intransigente entre dentro e fora do grupo nela existente. De acordo com a famosa descrição feita por Hitler, o agitador distingue implacavelmente entre ovelha e coelho, aqueles que têm de ser salvos, os escolhidos, “nós”, e aqueles que não são bons nem para se fazer mau proveito, que são condenados a priori e devem morrer, “eles”.
De maneira análoga, a personalidade ou caráter fascista está convencido de que todos aqueles que pertencem a seu próprio clã ou grupo, seus amigos e parentes, são o tipo certo de gente, ao passo que tudo que é estranho é visto com suspeita e, moralisticamente, rejeitado. Assim, o compasso moral do agitador e seus potenciais seguidores tem dois gumes. Embora ambos exaltem os valores convencionais e, antes de mais nada, exijam total lealdade às pessoas do mesmo grupo, nenhum deles reconhece deveres morais para com os outros.
O agitador professa indignação contra os sentimentalistas do governo, da mesma forma como a personalidade preconceituosa não sente piedade pelos pobres e se inclina a considerar os desempregados como preguiçosos naturais, um estorvo, e o imigrante estrangeiro, como um desajustado, um parasita, que também poderia ser eliminado. O desejo de extermínio está conectado com as ideias de sujeira e podridão, caminhando lado a lado com a ênfase exagerada em valores físicos externos, como asseio e limpeza.
O agitador jamais cansa de denunciar os estrangeiros e os refugiados como vermes e sanguessugas.
Finalmente, poderíamos mencionar o consenso existente entre os agitadores fascistas e o caráter fascista, algo que só pode ser explicado através da psicologia profunda. O agitador posa como o salvador de todos os valores estabelecidos e de seu país, mas está sempre reiterando pressentimentos sinistros e obscuros, a “ruína iminente”. Podemos encontrar elementos semelhantes na composição da personalidade preconceituosa, que sempre sublinha o positivo, a ordem conservadora das coisas, e condena as atitudes críticas, por serem destrutivas. O indivíduo preconceituoso vê em toda a parte a ação das forças do mal e costuma ser vítima fácil de todos os tipos de superstição e temores de catástrofe mundiais. Objetivamente, ele parece preferir a situação caótica à ordem estabelecida em que finge acreditar: ele se considera conservador, mas seu conservadorismo é uma impostura.
Lidando adequadamente com os expedientes do agitador, poderíamos não apenas reduzir a eficácia de sua técnica de manipulação de massa, altamente perigosa do ponto de vista de seu potencial, mas apanhar as características psicológicas que dificultam a um grande número de pessoas aceitar a verdade.
No plano racional, as asserções feitas pelo agitador são tão espúrias, tão absurdas, que deve haver razões emocionais muito poderosas para explicar por que ele se sai com elas. Além disso, podemos presumir que a audiência de algum modo sente esse absurdo. Porém, ao invés de se desanimar com isso, acontece que ela o desfruta. É como se a energia da fúria cega fosse dirigida contra a ideia de verdade mesma, como se a mensagem realmente saboreada pela audiência fosse inteiramente diferente de sua apresentação pseudofactual. É exatamente esse ponto crítico que deveria ser o alvo de nosso ataque.
Nas condições dominantes, a liderança democrática não pode esperar mudar a base das personalidades daqueles de cujo apoio depende a propaganda antidemocrática. Ela tem de se concentrar no esclarecimento das atitudes, ideologias e condutas, fazendo o melhor uso possível dos discernimentos revelados pela psicologia profunda.

4. A personalidade preconceituosa:

Para iniciar sem ir muito a fundo, consideremos a surpreendente ingenuidade política de um grande número de pessoas – de nenhum modo apenas as sem educação. Os programas, plataformas e slogans [autoritários] são aceitos pelo seu valor de face; julgados pelo que parece ser seu mérito imediato. Deixando de lado a suspeita um tanto vaga sobre os burocratas e a rapina política, suspeita essa que, note-se, é característica da personalidade antidemocrática muito mais do que a que lhe é oposta, a ideia de que as metas políticas escondem muito dos interesses daqueles que os defendem é estranha a muitas pessoas. Ainda mais estranha, porém, é a ideia de que as próprias decisões políticas dependem em grande parte de fatores subjetivos sobre os quais nem mesmo pode-se estar atento.
A pessoa preconceituosa externaliza todos os valores: ele acredita firmemente na importância última de categorias como natureza, saúde, respeito aos padrões estabelecidos etc. Revela relutância bem definida contra a introspecção e é incapaz de pôr a culpa em si mesma ou naqueles com que se identifica. Os estudos clínicos não têm dúvida que essa atitude é sobretudo uma formação reativa. Embora sendo superajustado ao mundo externo, a pessoa preconceituosa se sente insegura em nível mais profundo.
A falta de vontade de olhar para si mesma é, antes de mais nada, uma expressão do medo de fazer descobertas desagradáveis. Noutras palavras, algo que esconde os conflitos subjacentes à sua personalidade. Entretanto, como esses conflitos inevitavelmente produzem sofrimento, a defesa contra a autorreflexão não deixa de ser ambígua. Embora o indivíduo preconceituoso deteste ver seu próprio “lado mau”, ele não obstante espera algum tipo de alívio da hipótese de vir a se conhecer melhor do que ele o faz normalmente.
A dependência de muitas pessoas preconceituosas à direção externa, sua prontidão em consultar as descrições oferecidas por todos os tipos de charlatões, do astrólogo ao colunista de relações humanas, são, ao menos em parte, expressões distorcidas e externas de seu desejo de autoconsciência. Embora sejam inicialmente hostis às entrevistas psicológicas, as pessoas preconceituosas frequentemente terminam derivando algum tipo de gratificação das mesmas, uma vez que ela tenha começado e por mais que ela seja superficial.
Contra-argumentando, alguém poderia apontar para o fato indiscutível de que essas pessoas têm de defender seu próprio preconceito, dado que ele satisfaz numerosas funções, que variam desde uma pseudointelectual, o fornecimento de fórmulas fáceis e uniformes para a explicação de todo o mal que existe no mundo, até a criação de um objeto para catexe negativa, de um catalisador da agressividade. Se essas pessoas realmente têm de ser encaradas como portadoras de uma síndrome de caráter, não parece provável que elas vão se emancipar de uma fixação em satisfazer esse objetivo que é determinada pela estrutura interna de sua personalidade, muito mais do que por esse objetivo.
Entre os indivíduos preconceituosos, a urgência instintiva é tão forte e sua relação com qualquer objeto, sua aptidão afetiva às coisas reais, seja como objeto de amor, seja como objeto de ódio, é de natureza tão problemática, que não se consegue permanecer fiel nem mesmo ao inimigo escolhido. O mecanismo projetivo ao qual o indivíduo se encontra sujeito pode ser desviado de acordo com o princípio da menor resistência e as oportunidades oferecidas pela situação em que ele se encontra.

5. "Nostalgia" fascista:

O agitador geralmente posa de pequeno grande homem, a pessoa que, a despeito de seu exaltado idealismo e infatigável vigilância, pertence ao povo, é um vizinho, alguém próximo dos corações da gente comum, que reconforta por meio de sua simpatia condescendente e cria uma atmosfera de calor e companheirismo.
Quanto mais a tecnificação e especialização irrompem nas relações humanas imediatas que estão associadas à família, à oficina e à pequena empresa, mais os átomos sociais que formam as novas coletividades anseiam por abrigo, segurança econômica e pelo que os psicanalistas chamariam de restituição da situação uterina. Parece que uma parcela expressiva dos fanáticos fascistas – a chamada franja lunática – consiste dessas pessoas, sozinhas, isoladas e, de muitos modos, frustradas, em cuja psicologia a nostalgia desempenha um importante papel. O trabalho do agitador consiste em astuciosamente conquistar seu apoio, posando como seu vizinho.
Desse modo, porém, um motivo verdadeiramente humano, o anseio por amor, por relações genuínas e espontâneas, é apropriado pelos promotores de sangue-frio do inumano. O próprio fato de que as pessoas sofrem com a manipulação universal é usado de maneira manipulatória. Os sentimentos mais sinceros das pessoas são pervertidos e gratificados fraudulentamente.
Referência:
ADORNO, Theodor W. Estudos sobre a personalidade autoritária. São Paulo: UNESP, 2019.



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