AS SUPERSTIÇÕES, OS MITOS E OS ESTEREÓTIPOS SOBRE O ENSINO DA LÍNGUA PORTUGUESA NAS ESCOLAS
Por MARCOS BAGNO
Em 1990, o linguista e educador britânico Michael Stubbs escrevia que "toda a área da língua na educação está impregnada de superstições, mitos e estereótipos, muitos dos quais têm persistido por séculos e, às vezes, com distorções deliberadas dos fatos linguísticos e pedagógicos". É triste constatar que essas palavras, publicadas há anos, se aplicam com precisão impressionante ao que ainda ocorre hoje em dia no Brasil.
Passados mais de cem anos de surgimento, crescimento e afirmação da Linguística moderna como ciência autônoma - a sociedade normalmente prefere dar as costas à investigação científica da linguagem, preferindo consagrar-se à sustentação das "superstições, mitos e estereótipos" que circulam há mais de dois mil anos no Ocidente. Quando o assunto é língua, o espaço maior é ocupado por alguns oportunistas que, apoderando-se inteligentemente dessas "superstições, mitos e estereótipos", conseguem transformar esse folclore linguístico em bens de consumo que lhes rendem muito lucro financeiro, além de fama e destaque na mídia. Basta comparar o espaço dedicado aos pregadores da tradição gramatical que infestam o cotidiano dos brasileiros com suas quinquilharias multimidiáticas sobre o que é "certo" e "errado" na língua.
Muitos aplaudem e fazem eco aos detratores da Linguística como o Sr. Pasquale Cipro Neto que fala da existência de "certa corrente relativista" e escreve absurdos como "trata-se de um raciocínio torto, baseado num esquerdismo de meia-pataca, que idealiza tudo o que é popular - inclusive a ignorância, como se ela fosse atributo, e não problema, do 'povo'. O que esses acadêmicos preconizam é que os ignorantes continuem a sê-lo". Seria muito fácil retrucar que estamos aqui diante de um "direitismo popular", mas, como cientista, prefiro recorrer a outro tipo de argumento, baseado na reflexão teórica serena e na experiência conjunta de muitas pessoas que há anos se dedicam ao estudo e ao ensino da língua portuguesa no Brasil.
As críticas que o Sr. Pasquale Cipro Neto recebe dessa "corrente relativista" deixam-no "irritado". Ora, o que parece realmente irritar o Sr. Pasquale é o fato de que, apesar de obter tanto sucesso entre os leigos, nada do que ele diz ou escreve é levado a sério nos centros de pesquisa científica sobre a linguagem, sediados nas mais importantes universidades do Brasil - centros de pesquisa linguística, diga-se de passagem, reconhecidos internacionalmente como entre alguns dos melhores do mundo. Muito pelo contrário, se o nome do Sr. Pasquale é mencionado nas nossas universidades, é sempre como exemplo de uma atitude anticientífica dogmática e até obscurantista no que diz respeito à língua e seu ensino (em vários de seus artigos em jornais e revistas ele já chamou os linguistas de "idiotas", "ociosos", "defensores do vale-tudo" e "deslumbrados").
Se o Sr. Pasquale se irrita com os cientistas da linguagem, é porque sabe que não tem como responder às críticas que recebe por parte dos pesquisadores, dos teóricos e dos educadores empenhados num conhecimento maior e melhor da realidade linguística do nosso país.
O Sr. Pasquale não tem formação científica para tratar dos assuntos de que trata. Suas opiniões se baseiam exclusivamente na arcaica doutrina gramatical normativo-prescritiva, cuja consistência teórica e cujos problemas epistemológicos graves vêm sendo demonstrados e criticados pela Linguística moderna desde pelo menos o final do século XX. As concepções do Sr. Pasquale de "certo" e de "errado" estão em franca oposição não só com as teorias científicas mais atuais, mas até mesmo com a postura investigativa dos gramáticos profissionais de sólida formação filológica (coisa que ele definitivamente não é), para não mencionar as diretrizes pedagógicas das instâncias superiores da Educação nacional. O documento do Ministério da Educação chamado Parâmetros curriculares nacionais, por exemplo, é bem explícito em seu volume dedicado ao ensino da língua portuguesa: "Há muitos preconceitos decorrentes do valor social relativo que é atribuído aos diferentes modos de falar: é muito comum se considerarem as variedades linguísticas de menor prestígio como inferiores ou erradas. O problema do preconceito linguístico disseminado na sociedade em relação às falas dialetais deve ser enfrentado, na escola, como parte do objetivo educacional mais amplo de educação para o respeito à diferença. Para isso, e também para poder ensinar Língua Portuguesa, a escola precisa livrar-se de alguns mitos: o de que existe uma única forma "certa" de falar - a que se parece com a escrita - e o de que a escrita é o espelho da fala - e, sendo assim, seria preciso "consertar" a fala do aluno para evitar que ele escreva errado. Essas duas crenças produziram uma prática de mutilação cultural que, além de desvalorizar a forma de falar do aluno, tratando sua comunidade como se fosse formada por incapazes, denota desconhecimento de que a escrita de uma língua não corresponde inteiramente a nenhum de seus dialetos, por mais prestígio que um deles tenha em um dado momento histórico".
É provável, no entanto, que o Sr. Pasquale Cipro Neto acredite que os Parâmetros curriculares nacionais sejam obra de membros daquela "corrente relativista" que conseguiram se infiltrar no Ministério da Educação e se apoderar da redação do documento oficial. Os mitos e preconceitos no que dizem respeito à língua impedem a formação, no Brasil em particular, de uma autoestima linguística, uma vez que tudo o que os brasileiros ouvem e leem são os mesmos chavões, repetidos há séculos, de que "brasileiro não sabe português" e que a língua que falamos é "português estropiado". As lamurias e as queixas sobre a "ruína" e a "decadência" do português vêm de longa data, o que prova a antiguidade desse discurso alarmista e preconceituoso sobre o fenômeno da mudança das línguas ao longo do tempo!
Os linguistas são acusados de um "raciocínio torto" e de um "esquerdismo de meia-pataca" que supostamente sustentariam a ideia de que ensinar a norma-padrão não seria útil para as classes sociais desfavorecidas. Como pesquisador dedicado há anos ao estudo das relações entre língua, ensino de língua e fenômenos sociais, até hoje não encontrei uma única obra - assinada por linguista de formação ou por educador profissional - que negasse a importância do ensino da norma-padrão na escola brasileira, que pregasse a ideia torpe de que não se deve ensinar as formas prestigiosas da língua, ou que "preconizam que os ignorantes continuem a sê-lo", para citar as palavras infelizes dos críticos da Linguística.
Como responder a pergunta (invariavelmente presente na fala dos professores, principalmente os de língua): qual o objeto de ensino nas aulas de português? O que devemos ensinar a nossos alunos em sala de aula? Uma resposta concisa e rápida seria: devemos ensinar a norma-padrão. Já que só se pode ensinar algo que o aprendiz ainda não conhece, cabe à escola ensinar a norma-padrão, que não é língua materna de ninguém, que nem sequer é língua, nem dialeto, nem variedade. Ensinar o padrão se justificaria pelo fato dele ter valores que não podem ser negados - em sua estreita associação com a escrita, ele é o repositório dos conhecimentos acumulados ao longo da história. Esses conhecimentos, assim armazenados, constituiriam a cultura mais valorizada e prestigiada, de que todos os falantes devem se apoderar para se integrar de pleno direito na produção/condução/transformação da sociedade de que fazem parte.
No entanto, para aprender as formas mais padronizadas e prestigiosas da língua, não é necessário conhecer a nomenclatura gramatical tradicional, as definições tradicionais, nem praticar a velha e mecânica análise lexical e muito menos a torturante análise sintática. O Sr. Pasquale Cipro Neto lamenta que ninguém mais saiba diferenciar "sujeito" de "predicado", nem mesmo os professores. Ora, todo um longo trabalho de investigação teórica e de pesquisa em sala de aula - no Brasil e no resto do mundo -, trabalho que se faz há decênios, já deixou muito claro que não é decorando as páginas da gramática normativa que uma pessoa será capaz de falar, ler e escrever adequadamente às diversas situações.
Se existe, porém, uma grande resistência contra o redimensionamento do lugar do ensino da gramática na escola é porque todos sabemos que, ao longo do tempo, o conhecimento mecânico da doutrina gramatical se transformou num instrumento de discriminação e de exclusão social. "Saber português", na verdade, sempre significou "saber gramática", isto é, ser capaz de identificar - por meio de uma terminologia falha e incoerente - o "sujeito" e o "predicado" de uma frase, pouco importando o que essa frase queria dizer, os efeito de sentido que podia provocar etc. Transformada num saber esotérico, reservado a uns poucos "iluminados", a "gramática" passou a ser reverenciada como algo misterioso e inacessível - daí surgiu a necessidade de "mestres" e "guias", capazes de levar o "ignorante" a atravessar o abismo que separa os que sabem dos que não sabem português.
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