A DOR DO MUNDO
1. "Humanizar a Humanidade" - Contexto Histórico de "A Dor do Mundo" de Dom Helder Câmara:
Por EDUARDO HOORNAERT / ALDER JÚLIO FERREIRA CALADO
Anos "de chumbo" se anunciam durante a Ditadura Civil-Militar no Brasil. Todavia, Dom Helder Câmara não deixa de fazer denúncias referentes às desigualdades sociais, utilizando-se para tal finalidade em suas cartas o pseudônimo de "Padre José".
No poema "A Dor do Mundo", ele expressa a dor do mundo, que se configura como a dor do pobre por causa da discriminação, marginalização, opressão e violência. Para Dom Helder, é no pobre que Deus aparece de modo mais surpreendente. A presença de Deus no pobre sempre surpreende: "de repente, comecei a conversar com Deus escondido no pobre. Aí foi conversa de doido" (Carta Circular 22-23/3/1965, II, II, p. 295).
A classe burguesa se expressa pela imagem de quem anda por ruas intransitáveis, em que ninguém se encontra, ninguém se vê, ninguém se ama. Isso em vivo contraste com quem caminha por humildes "ruinhas" nos bairros pobres. Quem conhece os bairros de classe média nas cidades latino-americanas, sabe como são ‘isolacionistas’ os portões elétricos, as senhas de acesso, os radares, as câmaras de controle.
Dom Helder, que não é sociólogo, mas observador arguto da realidade, aponta a solidão como a grande dor das classes privilegiadas. Uma solidão que cria um mal-estar mal definido. Cada vez mais muros, mais portões, adesivos "fumê" (Dom Helder escreve vidros embaciados) em vidros de carros, janelas de casa, varandas, sacadas, cozinhas, entradas reservadas, comunicação só por telefone, etc. Cria-se um mundo separado do mundo, um mundo enxuto, sem pedintes e sem vendedores ambulantes. Um mundo de solidão em meio à multidão, sem compromisso com a pessoa ao lado, sem pé no chão. Esse mundo se impõe com tanta evidência que as pessoas ficam convencidas que não há como reagir, que não se consegue mudar as coisas, que somos impotentes. Uma situação de certo modo explosiva, pois pode criar o ódio contra tudo e contra todos ("me deixe em paz") e abre a porta para um cego descontrole político.
Em 1964, irrompeu no Brasil o famigerado Golpe Civil-Militar, introduzindo um tenebroso período ditatorial que se espalharia por outros países da América Latina, várias forças sociais animadas por alguns segmentos da Igreja Católica, depois, também por algumas outras Igrejas cristãs - como, por exemplo, aquelas que compõem o CONIC (Conselho Nacional de Igrejas Cristãs), pudemos assistir ao crescente movimento de resistência, protagonizado pelas forças progressistas da Igreja Católica, em associação com parcelas de outras Igrejas cristãs, a um tempo de resistência profética.
Ainda mais cedo, em 1962, havia-se iniciado o Concílio Vaticano II, convocado em 1º de janeiro de 1959 pelo Papa João XXIII. O objetivo daquele Concílio não era o de proclamar dogmas ou de condenar doutrinas, mas avaliar ação pastoral da Igreja Católica Romana, em relação ao mundo moderno. Tratava-se, então, do esforço de "aggiornamento", isto é, atualizar a ação da Igreja Católica em relação ao mundo contemporâneo. Ainda que minoritários, vários padres conciliares muito se empenharam, no sentido de que o Concílio Vaticano II pudesse avançar também quanto ao seu compromisso com a causa dos desvalidos. Este aspecto, todavia, mereceu um lugar muito aquém do esperado, ainda que em alguns documentos.
Tal sentimento de compromisso com a causa libertadora dos pobres foi especialmente assumido por 40 padres conciliares, entre bispos, arcebispos e até cardeal, por ocasião do encontro organizado, na catacumba de Santa Domitila, nos arredores de Roma, poucos dias antes do encerramento da última sessão do Concílio Vaticano II, mais precisamente no dia 16 de novembro de 1965. Este encontro ficou conhecido como o Pacto das Catacumbas, em que seus participantes, ao celebrarem o Memorial da Ceia do Senhor, também cuidaram de firmar um compromisso, em um documento composto por 13 pontos e, no qual declararam seu compromisso de, ao retornarem às suas respectivas dioceses, nos vários continentes, abdicarem do tratamento pomposo de “Excelência”, bem como de deixarem seus palácios episcopais, indo residir mais perto do povo, em casa simples. Mais do que isto: assumiram o compromisso de passarem a viver um estilo de vida mais simples, mais próximo do povo, dos pobres. Animados pelos compromissos firmados por ocasião do Pacto das Catacumbas, os quarenta primeiros signatários foram granjeando a adesão de centenas de outros colegas, de sorte que o Pacto logo passaria a contar com a adesão de quinhentos signatários.
Ao retornarem aos seus países, inclusive os bispos latino-americanos e brasileiros, encontraram uma atmosfera muito tensa, de uma espantosa desigualdade social, sustentada por regimes ditatoriais, aos quais parcelas significativas das populações daqueles países tratavam de opor resistência. Um clima de extrema tensão social. Vivíamos, então, na América Latina, inclusive no Brasil, um contexto de grande ebulição social, em que, ao interno e fora dos espaços eclesiais, vários grupos de resistência se organizavam. E deles, ao seu modo, também participaram as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), que se iam multiplicando pelas várias regiões do país e mesmo da América Latina. Às CEBs juntaram-se outras segundas experiências pastorais, tais como o Conselho Indigenista Missionário (CIMI), a Comissão Pastoral da Terra (CPT), a Comissão Pastoral Operária (CPO), a Pastoral de Juventude do Meio Popular (PJMP), as Pequenas Comunidades de Religiosas Inseridas no Meio Popular (PCIs), a Ação Católica Operária (ACO), o Movimento dos Trabalhadores Cristãos (MTC), a Pastoral dos Pescadores (PP), a Comissão de Justiça e Paz (CJP), os Centros de Defesa dos Direitos Humanos (CDDH), a Ação dos Cristãos no Meio Rural (ACR), o Movimento de Evangelização Rural (MER), Centro de Estudos Bíblicos (CEBI), entre outras experiências eclesiais que funcionavam como uma considerável rede de resistência popular à Ditadura Cilvil-Militar e de defesa e promoção dos direitos humanos. Esta rede tornou-se conhecida como " Igreja dos Pobres "ou como "Igreja na Base".
Aquele contexto de ebulição coincidiu com a aproximação do início da segunda Conferência Episcopal Latino-Americana, que se realizaria, em Medellín, na Colômbia, em 1968. Uma Conferência, inicialmente pensada para expressar a recepção das conclusões do Concílio Vaticano II, foi tomando ares mais fortes, à medida que, de uma simples recepção aos ensinamentos do Concílio Vaticano II, passou a ser a expressão de um novo rosto de ser igreja, isto é, expressando traços de uma Igreja Latino-americana com rosto próprio, não mais seguindo como mera extensão do pensar e do sentir eurocêntricos, a que estava acostumada. Pela primeira vez, após séculos de história da Igreja Católica, na América Latina, o povo latino-americano, em especial o povo dos pobres, passou a ser visto como um sujeito da história, cidadão protagonista também de uma ação eclesial, com traços próprios. Neste sentido, a Teologia da Libertação exerceu uma contribuição extraordinária, à medida que buscou traduzir, de modo fiel, os anseios e as esperanças do povo dos pobres, na América Latina.
Neste sentido, é que se pode compreender a ação desenvolvida por parte do episcopado latino-americano, incluindo o do Brasil, presente também em seus respectivos lemas episcopais. O título deste texto expressa um desses lemas - "humanizar a humanidade" -, escolhido por Dom Pedro Casaldáliga. De fato, a trajetória deste religioso representa o significado do lema por ele escolhido, ao longo de sua trajetória episcopal junto ao povo dos pobres de São Félix do Araguaia. Com efeito, as mais diversas ações, marcadas pelo seu compromisso com a causa dos desvalidos, tem muito a ver com o lema escolhido: trata-se, de fato, de humanizar a humanidade.
No auge da repressão da Ditadura Militar, que não tinha coragem de assassinar a figura de Dom Helder Câmara, não hesitava em silenciá-lo, proibindo citar seu nome nos veículos de comunicação, e, o que é pior, perseguia seus mais próximos, entre os quais, o Padre Antônio Henrique Pereira Neto, torturado e assassinado, em 1969.
2. A DOR DO MUNDO:
Por DOM HELDER CÂMARA
2.1. A DOR DO POBRE:
O filho de mãe solteira
Três vezes filho.
Primeiro,
Como todos os filhos.
Depois,
Porque sem coragem,
Sem amor,
Não chegaria a nascer.
Por fim,
Porque além de mãe,
A mãe
Tem de ser pai.
Saber trabalhar,
Querer trabalhar
E não achar
Nem biscate.
Ter de esmolar,
Ser inoportuno,
Impertinente.
Parecer viciado e cínico,
Com o recurso único
De chegar à casa
Com um pouco de pão.
Chegar humilhado,
Ser recebido a insultos.
Perder moral,
Junto à mulher e filhos.
Tudo isso percebi, Manuel,
Ao ver o brilho de teus olhos
Quando,
Ao invés da esmola triste
Te dei trabalho
Tudo adivinhei
Quando minha Irmã (a Irmã Chuva)
Fez chover
Na terra estorricada de tua alma.
Chuva, dá um jeito
De abrir goteiras
Em todo o meu corpo,
De gelar meus ossos,
De alagar a minha alma.
Mas deixe em paz
Os mocambos de minha gente
Que precisa descansar
Da realidade triste
E esquecer no sono
A fome impertinente.
2.2. A DOR DAS CLASSES PRIVILEGIADAS:
Tanto rosto
E nenhum olhar.
Tantos lábios
E nenhum sorriso
Tanta aparente presença
Tanta ausência real.
Há ruas intransitáveis
Em que ninguém se encontra,
Ninguém se vê,
Ninguém se ama.
E há ruas,
Humildes "ruinhas",
Onde pode até sair briga,
Mas briga de faz-de-conta,
Pois todo mundo é irmão.
Quando encontro
Criaturas errantes
No país do ódio,
- cheias de travos,
De amargura,
Ou, o que é mais triste,
De gelo,
De frieza,
E indiferença –
Sinto uma vontade imensa
De levá-las nos braços
Ao condado do amor.
Por que me afligem tanto
Vidros embaciados?
Não deixam de ser
Imagem angustiante
Do pecado contra a luz.
Se eu pudesse,
À noite
Nenhuma casa
Se fecharia de todo...
Casa nenhuma deixaria de ter
Uma luz amiga
Inspirando confiança à distância...
Quando os portões e as portas se fecham
E a luz se apaga,
De um certo modo
Cada família
Se tranca no seu egoísmo.
Referência:
O texto e o poema estão presentes em:
HOORNAERT, Eduardo; CALADO, Alder Júlio Ferreira. Teologia Nordeste "Igreja na base" (Site). João Pessoa, 2020. Disponível em: <https://www.teologianordeste.net/>.
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