O DEVER DE EDUCAR
Por MANOEL BOMFIM
A educação é fato natural, e corresponde a uma fase indispensável na formação dos indivíduos, para que possam atingir e realizar as condições do viver humano. É uma necessidade imperiosíssima, que resulta desta circunstância: no homem, os processos de adaptação ao meio e os recursos de realização da vida de relação, em vez de serem simplesmente instintivos e hereditários são conscientes, inteligentes, suscetíveis de variações e de aperfeiçoamentos, e se transmitem às gerações sucessivas, não como herança biológica, mas sob a forma de aquisições pessoais, com esse mesmo caráter de conscientes e inteligentes, mediante a ação sistemática dos indivíduos já feitos, e das suas obras, sobre os jovens indivíduos.
Essa ação sistemática, ou intervenção necessária e propositada, na formação das criaturas humanas é a própria educação. Com ela se adquire a verdadeira qualidade de ser humano, porque é assim, educativamente, que se faz a transmissão dos processos conscientes e humanos de relações com o meio. Há, em tudo isso, infinitas vantagens: a transmissão consciente e educativa, substituindo, na espécie humana, a herança biológica, quanto às formas adaptativas, é uma das suas acentuadas superioridades, porque, convenientemente feita, ela permite, a cada indivíduo, o condensar e aproveitar, no seu preparo pessoal, a experiência geral da espécie. Graças à educação, cada personalidade nova pode resumir o progresso moral e mental da humanidade. Em compensação, se é malfeita, ou incompleta, a educação, o indivíduo será um deformado moralmente, ou mutilado mentalmente, como resultaria ser um deformado o animal, cuja gestação, perturbada por qualquer processo mórbido, desse lugar a herdar funções alteradas e instintos pervertidos. Ao mesmo tempo, sucede que, ainda quando seja benfeita a formação educativa estende-se por longo período, e enquanto ela não está terminada, ou, pelo menos muito adiantada, o jovem é um incompleto.
A educação equivale, verdadeiramente, a um terceiro período de desenvolvimento, na constituição do ser humano completo: gestação, aleitamento, educação. A educação é uma consequência natural da superioridade de organização nervosa do homem, como o aleitamento é uma consequência natural da organização biológica dos mamíferos. É tão necessário educar a criança como aleitar o recém-nascido. Para o homem, tanto é condição de vida o alimentar-se o bebê, e garantir a formação completa do organismo, como dar à criança a educação, que nutre a inteligência, e permite a formação do seu espírito para a vida moral.
Essa é a situação natural dos jovens indivíduos humanos quanto à necessidade de educação. Transportada para as condições do viver moral, na linguagem da vida social, essa necessidade se desdobra em direitos da criança, e deveres dos pais e da sociedade para com a criança. Na realidade, direitos e deveres não são mais do que aspectos subjetivos com que se formulam, na consciência humana, as imposições naturais, relativamente às relações dos indivíduos entre si.
Para a bem compreender o problema da educação e formular o respectivo sistema de realização, convém considerar o caso no seu aspecto moral, e defini-lo em termos sociais, isto é – como direitos e deveres. A criança tem de ser considerada e garantida nas condições naturais da sua realidade, em vista da situação humana em que vai viver. Seus direitos não são, apenas, os de um animal que deve viver, nem mesmo, simplesmente, os de uma criatura já em definitivo constituída e que tem de continuar a existir; a criança é, principalmente, um ser a realizar-se. A vida não lhe será possível, senão humana, moralmente, e, para tanto, é lhe em absoluto necessário ser convenientemente educada. A sociedade, que mais tarde, vai exigir moralidade e atividade, tem o dever de garantir e fornecer à criança as possibilidades de realizar a vida nessas condições. Para ser implacável, como é, nas exigências, ela tem de ser completa nas garantias.
A criança é um potencial humano; dela tem de sair uma pessoa, consciente das próprias forças, capaz de utilizá-las com o máximo de proveito, para si e para a sociedade. Com as energias psíquicas da criança, se têm de formar: uma inteligência, um caráter e um coração. Sem isso, não se terá realizado nela uma personalidade. Nada se pode exigir ou pedir ao homem como personalidade social, se não lhe é afirmado e assegurado esse direito de realizar-se como personalidade social. A sociedade, no definir os deveres individuais, trata somente com individualidades conscientes, com pessoas situadas na vida, e senhoras dos meios que permitem viver moralmente, no complexo dos liames sociais. Para chegar a essa situação, para ser uma pessoa humana, é indispensável a educação; a criança não se pode educar por si; tem o direito a ser educada. A sociedade tem, então, o dever de dar-lhe a conveniente educação.
O direito que tem a criança de ser convenientemente educada, representa, para o Estado, o dever explícito de assegurar-lhe essa educação, porque o Estado é a organização social explicitamente encarregada de garantir direitos. Nas condições jurídicas e políticas em que vivem as sociedades, hoje em dia mais cultas, incumbe ao Estado dupla função: superintender as necessidades coletivas, sob a forma de serviços públicos, e defender e garantir os direitos individuais, fazendo-os valer pela força, quando preciso, isto é, obrigando os fortes a respeitar os direitos dos fracos. Em qualquer desses casos, qualquer que seja o aspecto sob o qual consideremos a função do Estado, a educação se lhe impõe como assunto capital, pois que o Estado é o órgão explícito da nação, isto é, da própria sociedade organizada, nas formas normais da existência coletiva.
O Estado, representante formal da sociedade organizada em nação, responsável pelos seus destinos, tem na educação o recurso que lhe permite influir de fato, e com segurança, nos destinos nacionais. Não esqueçamos que a realidade, na organização social, são as pessoas, e que todo o valor, toda a significação de um povo vem do seu preparo para o viver social, o qual resulta exclusivamente da educação, e constitui, justamente, seu aspecto mais importante. Bem se pode definir: educar é ensinar a vida social. Por fim, nem há necessidade de demonstrar que a educação, mais do que qualquer outra, é uma questão social e que sua boa realização atende a necessidades essenciais na evolução da espécie humana.
A criança, para quem se pede a educação, é a criatura nimiamente fraca. Se não se lhe pode negar o direito de viver; se a vida, humanamente entendida, não lhe é possível sem ser a intervenção educativa; como proteção sua reconhecida fraqueza; em nome dos seus deveres policiais; tem o Estado a obrigação de garantir, a toda criança a indispensável educação. Só desse modo a defenderá e protegerá eficazmente.
O problema do Estado muitas vezes é que, em vez de preparar os indivíduos para viverem humanamente, abandona-os, esquece-os em crianças, para, mais tarde, cercá-los de leis e de tribunais, como única possibilidade de uma vida que não seja uma secessão de atentados e de crimes. As leis coercitivas se multiplicam quando a educação se faz tibiamente e mal orientada. A verdadeira educação é, de fato, adaptação à vida moral e social; se, mal-educados, os indivíduos são inaptos ao viver social, o número de infrações e desvios nos costumes há de aumentar.
Se há uma conclusão é esta: o Estado não pode deixar de intervir na educação, único meio de garantir à criança seu direito a viver humanamente.
REFERÊNCIA:
BOMFIM, Manoel. Textos selecionados. In: GONTIJO, Rebeca (Org.). Manoel Bomfim. Recife: Fundação Joaquim Nabuco; Editora Massangana, 2010 (Coleção Educadores MEC).
Comentários
Postar um comentário
Evitar comentários que: (1)sejam racistas, misóginos, homofóbicos ou xenófobos; (2) difundam a intolerância política; (3) atentem contra o Estado Democrático de Direito; e (4) violem a honra, dignidade e imagem de outras pessoas. Grato pela compreensão.