POBREZA, DISCRIMINAÇÃO E TRAUMA

(Para reflexões sobre a "Humanidade")

Por CAROLINA MARIA DE JESUS (Escritora negra brasileira, catadora de papéis e moradora da Favela do Canindé, em São Paulo, 1914-1977)
- Não tenho força física, mas as minhas palavras ferem mais do que espada. E as feridas são incicatrizáveis. As mulheres pobres não tinham tempo disponível para cuidar de seus lares. Às seis da manhã, elas deviam estar nas casas das patroas para acenderem o fogo e prepararem a refeição matinal. Deixavam o trabalho às onze da noite. O homem pobre deveria gerar, nascer, crescer e viver sempre com paciência para suportar as falácias dos donos do mundo. Porque só os homens ricos podiam dizer “Sabe com quem está falando?” para mostrar sua superioridade. Se o filho do patrão espancasse o filho da cozinheira, ela não deveria reclamar para não perder o emprego. Mas se a cozinheira tinha filha, pobre negrinha! O filho da patroa a utilizaria para o seu noviciado sexual. Meninas que ainda estavam pensando nas bonecas, nas cirandas e cirandinhas eram brutalizadas pelos filhos do senhor Pereira, Moreira, Oliveira, e outros porqueiras que vieram do além-mar. No fim de nove meses a negrinha era mãe de um mulato ou pardo. A mãe negra insciente e sem cultura, não podia revelar que seu filho era neto do doutor X ou Y, porque a mãe dela perderia o emprego. O pai negro era afônico; se pretendia reclamar, o patrão impunha: – Cala boca negro vadio! Vagabundo! O único recurso era entregar para Deus que é o advogado dos pobres.
- Se me fosse possível explicar tantas coisas! Mas o tempo também é professor e te ensinará. Os que aprendem por si próprios aprendem melhor. Trabalhamos quatro anos na fazenda. Depois o fazendeiro nos expulsou de suas terras.
- Vão embora não os quero na minha fazenda. Vocês não me dão lucro. Só me dão prejuízos, a sua lavoura é fraca. Ele vendia mil sacos de café classificado, o café moca. Vendia cem porcos gordos para frigoríficos, e nós ganhávamos trinta mil-réis com as verduras e ele queria divisão. Nestas fazendas só o fazendeiro tem o direito de ganhar dinheiro. O fazendeiro entrou, fechou a porta dizendo: – Oh! Se ainda existisse o tronco!
- Eu sempre ouvi falar na favela, mas não pensava que era lugar tão asqueroso assim.
- Quando eu vou na cidade tenho a impressão que estou no paraíso. Acho sublime ver aquelas mulheres e crianças tão bem vestidas. Tão diferentes da favela. As casas com seus vasos de flores e cores variadas. Aquelas paisagens hão de encantar os olhos dos visitantes de São Paulo, que ignoram que a cidade mais afamada da América do Sul está enferma. Com as suas úlceras. As favelas.
- Cheguei ao inferno. Devo incluir-me, porque eu também sou da favela. Sou rebotalho. Estou no quarto de despejo, e o que está no quarto de despejo ou queima-se ou joga-se no lixo.
- Chegou um caminhão aqui na favela. O motorista e o seu ajudante jogam umas latas. É linguiça enlatada. Penso: é assim que fazem esses comerciantes insaciáveis. Ficam esperando os preços subirem na ganância de ganhar mais. E quando apodrecem, jogam fora para os corvos e os infelizes dos favelados. Não houve briga. Eu até estou achando isto aqui monótono. Vejo as crianças abrirem as latas de linguiça e exclamarem satisfeitas. – Hum! Tá gostosa!
A Dona Alice deu-me uma para experimentar. Mas a lata está estufada. Já está podre.
- Era o fim de 1948, surgiu o dono do terreno da Rua Antônio de Barros onde estava localizada a favela. Os donos exigiram, apelaram e queriam o terreno vago no prazo de 60 dias. Os favelados agitavam-se. Não tinham dinheiro. Os que podiam sair ou comprar terreno saiam. Mas, era a minoria que estava em condições de sair. A maioria não tinha recursos. Estavam todos apreensivos. Os policiais percorriam a favela insistindo com os favelados para sair. Só se ouvia dizer o que será de nós?
- Às oito e meia da noite eu já estava na favela respirando o odor dos excrementos que mescla com o barro podre. Quando estou na cidade tenho a impressão que estou na sala de visita com seus lustres de cristais, seus tapetes de veludos, almofadas de cetim. E quando estou na favela tenho a impressão que sou um objeto fora de uso, digno de estar num quarto de despejo. Os vizinhos da alvenaria olham os favelados com repugnância. Percebo seus olhares de ódio porque eles não querem a favela aqui. Que a favela deturpou o bairro. Que tem nojo da pobreza. Esquecem eles que na morte todos ficam pobres.
- 13 DE MAIO: Hoje amanheceu chovendo. É um dia simpático para mim. É o dia da Abolição. Dia que comemoramos a libertação dos escravos. A Vera começou a pedir comida. E eu não tinha. Era a reprise do espetáculo. Eram 9 horas da noite quando comemos. E assim no dia 13 de maio de 1958 eu lutava contra a escravatura atual – a fome! Alimentei, eduquei e amei meus três filhos. Catei papel, revirei lixo. Do papel também tirei meu alimento: a escrita.
- O céu está belíssimo. As nuvens estão vagueando-se. Umas negras, outras cor de cinza e outras claras. Em todos os recantos existe a fusão das cores. Será que as nuvens brancas pensam que são superior as nuvens negras? Se as nuvens chegassem até a terra iam ficar horrorizadas com as divergências de classe. Aqui na terra é assim: o preto quando quer predominar é morto. Podemos citar Patrice Lumumba.
- No ano de 1925, as escolas admitiam alunas negras. Mas, quando as alunas negras voltavam das escolas, estavam chorando porque os brancos falavam que os negros eram fedidos.
* Mais textos de Carolina de Jesus poderão ser encontrados na seguinte referência bibliográfica:
JESUS, Carolina Maria de. Antologia pessoal. José Carlos Sebe Bom Meihy (Org.). Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1996.



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