CULTURA, POLÍTICA E PODER
Por MARIO VARGAS LLOSA (Arequipa, Peru, 1936 - Lima, Peru, 2025. Escritor peruano vencedor do Prêmio Nobel de Literatura em 2010)
Cultura não depende de política, em todo caso não deveria depender, embora isso seja inevitável nas ditaduras, principalmente as ideológicas ou religiosas, aquelas em que o regime se sente autorizado a ditar normas e estabelecer cânones dentro dos quais a vida cultural deve desenvolver-se, sob a vigilância do Estado empenhado em não permitir que ela se afaste da ortodoxia que serve de sustentáculo aos governantes. O resultado desse controle, como sabemos, é a progressiva transformação da cultura em propaganda, ou seja, em sua degeneração por falta de originalidade, espontaneidade, espírito crítico e vontade de renovação e experimentação formal.
Numa sociedade aberta, embora a cultura se mantenha independente da vida oficial, é inevitável e necessário que haja relação e intercâmbios entre cultura e política. Não só porque o Estado, sem reduzir a liberdade de criação e crítica, deve apoiar e propiciar atividades culturais — na preservação e promoção do patrimônio cultural, acima de tudo —, como também porque a cultura deve exercer influência sobre a vida política, submetendo-a a uma contínua avaliação crítica e inculcando-lhe valores e formas que a impeçam de degradar-se. Na civilização do espetáculo, infelizmente, a influência exercida pela cultura sobre a política, em vez de exigir que esta mantenha certos padrões de excelência e integridade, contribui para deteriorá-la moral e civicamente, estimulando o que possa haver nela de pior, como por exemplo a mera farsa. Já vimos que, no compasso da cultura reinante, a política foi substituindo cada vez mais ideias e ideais, debate intelectual e programas, por mera publicidade e aparências. Consequentemente, a popularidade e o sucesso são conquistados não tanto pela inteligência e pela probidade quanto pela demagogia e pelo talento histriônico. Assim, ocorre o curioso paradoxo de que, enquanto nas sociedades autoritárias é a política que corrompe e degrada a cultura, nas democracias modernas é a cultura — ou aquilo que usurpa seu nome — que corrompe e degrada a política e os políticos.
O desprestígio da política em nossos dias não conhece fronteiras, e isso obedece a uma realidade incontestável: com variantes e matizes próprios de cada país, em quase todo o mundo, tanto no adiantado como no subdesenvolvido, o nível intelectual, profissional e sem dúvida também moral da classe política decaiu. Isso não é privativo das ditaduras. As democracias sofrem esse mesmo desgaste, e sua consequência é o desinteresse pela política, demonstrado pelo grau de abstenções nos processos eleitorais, algo tão frequente em quase todos os países. As exceções são raras. Provavelmente já não restam sociedades nas quais o fazer cívico atraia os melhores.
A que se deve o fato de o mundo inteiro ter chegado a pensar aquilo que todos os ditadores sempre quiseram inculcar nos povos que subjugam, ou seja, que a política é uma atividade vil?
É verdade que, em muitos lugares, a política é ou se tornou de fato suja e vil. “Sempre foi”, dizem pessimistas e cínicos. Não, não é verdade que sempre foi nem que seja agora em todos os lugares e da mesma maneira. Em muitos países e em muitas épocas, a atividade cívica alcançou prestígio merecido porque atraía gente valorosa e porque seus aspectos negativos não pareciam prevalecer sobre o idealismo, a honradez e a responsabilidade da maioria da classe política. Em nossa época, esses aspectos negativos da vida política foram amplificados, frequentemente de maneira exagerada e irresponsável pelo jornalismo marrom, com o resultado de que a opinião pública chegou à convicção de que política é atividade de pessoas amorais, ineficientes e propensas à corrupção.
O avanço da tecnologia audiovisual e dos meios de comunicação, que serve para contrapor-se aos sistemas de censura e controle nas sociedades autoritárias, deveria ter aperfeiçoado a democracia e incentivado a participação na vida pública. Mas teve efeito contrário, porque em muitos casos a função crítica do jornalismo foi distorcida pela frivolidade e pela avidez de diversão da cultura reinante. Em muitas democracias, como consequência da frenética busca do escândalo e da bisbilhotice barata que se encarniça com os políticos, o que o grande público conhece melhor sobre eles é o que de pior eles podem mostrar. E o que mostram é, em geral, a mesma atividade penosa em que nossa civilização transforma tudo o que toca: uma comédia de fantoches capazes de lançar mão das piores artimanhas para ganhar o favor de um público ávido de diversão.
Não se trata de um problema, porque os problemas têm solução, e este não tem. É uma realidade da civilização de nosso tempo diante da qual não há escapatória. Teoricamente, a justiça deveria fixar os limites a partir dos quais uma informação deixa de ser de interesse público e transgride o direito à privacidade dos cidadãos. Na maioria dos países, semelhante julgamento só está ao alcance de astros e milionários. Nenhum cidadão comum pode arriscar-se a um processo que, além de afogá-lo num mar litigioso, acarretaria altos custos em caso de perda da ação. Por outro lado, muitas vezes os juízes, adotando um critério respeitável, resistem a proferir sentenças que pareçam restringir ou abolir a liberdade de expressão e informação, garantia da democracia.
O jornalismo escandaloso é um perverso enteado da cultura da liberdade. Não pode ser suprimido sem que se inflija ferimento mortal à liberdade de expressão. Como o remédio seria pior que a doença, precisamos suportá-lo, tal como certos tumores são suportados por suas vítimas, pois estas sabem que poderiam perder a vida se tentassem extirpá-los. Não chegamos a esta situação em virtude das maquinações tenebrosas de alguns donos de jornais ou canais de televisão que, ávidos por dinheiro, exploram com total irresponsabilidade as paixões baixas das pessoas. Esta é consequência, não causa.
A raiz do fenômeno está na cultura. Ou melhor, na banalização lúdica da cultura imperante, em que o valor supremo é agora divertir-se e divertir, acima de qualquer outra forma de conhecimento ou ideal. As pessoas abrem um jornal, vão ao cinema, ligam a tevê ou compram um livro para se entreter, no sentido mais ligeiro da palavra, não para martirizar o cérebro com preocupações, problemas, dúvidas. Só para distrair-se, esquecer-se das coisas sérias, profundas, inquietantes e difíceis, e entregar-se a um devaneio ligeiro, ameno, superficial, alegre e sinceramente estúpido. E haverá algo mais divertido que espiar a intimidade do próximo, surpreender um ministro ou um parlamentar de cuecas, investigar os desvios sexuais de um juiz, comprovar que chafurda no lodo quem era visto como respeitável e exemplar?
A imprensa sensacionalista não corrompe ninguém; nasce corrompida por uma cultura que, em vez de rejeitar as grosseiras intromissões na vida privada das pessoas, as reivindica, pois esse passatempo, farejar a imundície alheia, torna mais tolerável a jornada do funcionário pontual, do profissional entediado e da dona de casa cansada. A necedade passou a ser rainha e senhora da vida pós-moderna, e a política é uma de suas principais vítimas.
Na civilização do espetáculo os papéis mais infamantes talvez sejam os que os meios de comunicação reservam aos políticos. E esta é outra das razões de no mundo contemporâneo haver tão poucos dirigentes e estadistas exemplares — como um Nelson Mandela — que mereçam admiração universal.
Outra consequência de tudo isso é a escassa ou nula reação do grande público aos níveis de corrupção que, tanto nos países desenvolvidos quanto nos chamados em vias de desenvolvimento, seja nas sociedades autoritárias, seja nas democracias, talvez sejam os mais elevados da história. A cultura esnobe e despreocupada adormenta, cívica e moralmente, uma sociedade que desse modo se torna cada vez mais indulgente para com os desvios e excessos dos que ocupam cargos públicos e exercem qualquer tipo de poder. Por outro lado, esse relaxamento moral ocorre quando a vida econômica progrediu tanto em todo o planeta e alcançou tal grau de complexidade, que a fiscalização do poder que a sociedade pode exercer através da imprensa independente e da oposição é muito mais difícil que no passado. E as coisas se agravam quando o jornalismo, em vez de exercer sua função fiscalizadora, dedica-se principalmente a entreter seus leitores, ouvintes e telespectadores com escândalos e sensacionalismos. Tudo isso favorece uma atitude tolerante ou indiferente no grande público em relação à imoralidade.
Nada desmoraliza tanto uma sociedade nem desacredita tanto as instituições como o fato de seus governantes, eleitos em eleições mais ou menos limpas, aproveitarem o poder para enriquecer burlando a confiança pública neles depositada. Na América Latina — e também em outras regiões do mundo, evidentemente — o fator mais importante de criminalização da atividade pública tem sido o narcotráfico. É uma indústria que apresentou modernização e crescimento prodigiosos, pois aproveitou a globalização melhor que qualquer outra para estender suas redes além das fronteiras, diversificar-se, metamorfosear-se e reciclar-se na legalidade. Seus enormes ganhos lhe possibilitam infiltrar-se em todos os setores do Estado. Como pode pagar melhores salários que este, compra ou suborna juízes, parlamentares, ministros, policiais, legisladores e burocratas, ou faz intimidações e chantagens que, em muitos lugares, lhe garantem impunidade. Praticamente não se passa um só dia sem que em algum país latino-americano se descubra um novo caso de corrupção vinculado ao narcotráfico. A cultura contemporânea, em vez de mobilizar o espírito crítico da sociedade e sua vontade de combater esse estado de coisas, faz que tudo isso seja percebido e vivido pelo grande público com a resignação e o fatalismo com que se aceitam os fenômenos naturais — terremotos e tsunamis — e como uma representação teatral que, embora trágica e sangrenta, produz emoções fortes e agita a vida cotidiana.
Evidentemente a cultura não é a única culpada da desvalorização da política e da função pública. Outra razão para que profissionais e técnicos mais bem preparados se afastem da vida política está nos valores baixos com que os cargos públicos costumam ser remunerados. Na prática, em nenhum país do mundo os salários de uma repartição pública são comparáveis aos que um jovem com boas credenciais e talento chega a ganhar numa empresa privada. A restrição nos salários dos funcionários públicos é uma medida que costuma ter o apoio da opinião pública, principalmente quando a imagem do servidor do Estado está desacreditada, mas seus efeitos acabam sendo perniciosos para o país. Esses baixos salários são um incentivo para a corrupção. E afastam dos organismos públicos os cidadãos de melhor formação e maior honestidade, o que significa que esses cargos frequentemente são preenchidos por incompetentes e por pessoas de escassa moral.
O funcionário está tão desprestigiado quanto o político profissional, e a opinião pública costuma vê-lo não como uma peça-chave do progresso, mas como um tropeço e um parasita do tesouro público. Evidentemente, a inflação burocrática, o crescimento irresponsável no número de funcionários para retribuir favores políticos e criar clientelas cativas às vezes transformou a administração pública num labirinto em que o menor trâmite se converte num pesadelo para o cidadão que carece de meios de influências e não pode ou não quer pagar propinas.
Mas é injusto generalizar e pôr todos no mesmo saco, quando há muitos que resistem à apatia e ao pessimismo e demonstram com seu discreto heroísmo que a democracia funciona, sim.
Uma crença tão disseminada quanto injusta é que as democracias estão sendo minadas pela corrupção. Acaso não são descobertos diariamente, nas democracias antigas e nas novíssimas, casos nauseabundos de governantes e funcionários aos quais o poder político serve para amealhar fortunas com uma velocidade vertiginosa? Não são incontáveis os casos de juízes subornados, contratos ilícitos, impérios econômicos que têm em sua folha de pagamentos militares, policiais, ministros, agentes alfandegários? Acaso a podridão do sistema não atinge tal nível que só resta resignar-se, aceitar que a sociedade é e será uma selva onde as feras sempre devorarão os cordeiros?
É essa atitude pessimista e cínica, e não a ampla corrupção, que pode efetivamente acabar com as democracias, transformando-as numa casca esvaziada de substância e verdade. É uma atitude inconsciente em muitos casos, que se traduz como desinteresse e apatia em relação à vida pública, ceticismo em relação às instituições, relutância em pô-las à prova. Quando consideráveis parcelas de uma sociedade devastada pela inconsequência sucumbem ao catastrofismo e à anomia cívica, o campo fica livre para os lobos e as hienas.
Não há uma razão fatídica para que isso ocorra. O sistema democrático não garante que a desonestidade e o embuste desapareçam das relações humanas; mas estabelece alguns mecanismos para minimizar seus estragos, detectar, denunciar e punir quem quer que se valha deles para atingir altas posições ou enriquecer, e — o que é mais importante — para reformar o sistema de tal maneira que esses delitos acarretem cada vez mais riscos para quem os cometer.
Um aspecto nevrálgico de nossa época, que contribui para enfraquecer a democracia, é o desapego à lei, outra das gravíssimas consequências da civilização do espetáculo.
O desapego à lei nasceu no seio dos Estados de direito e consiste numa atitude cívica de desprezo ou desdém pela ordem legal existente e na indiferença e anomia moral que autoriza o cidadão a transgredir e burlar a lei quantas vezes puder para benefício próprio, principalmente lucrando, mas muitas vezes também para simplesmente manifestar desprezo, incredulidade ou zombaria em relação à ordem existente. Não são poucos os que, na era da civilização da diversão, violam a lei para divertir-se, como quem pratica um esporte de risco.
Uma explicação que se dá para o desapego à lei é que amiúde as leis são malfeitas, não são ditadas para favorecer o bem comum, mas sim a interesses particulares, ou são concebidas com tanta obtusidade que os cidadãos se veem estimulados a esquivar-se delas. É óbvio que, se um governo sobrecarregar os contribuintes abusivamente de impostos, estes se verão tentados a fugir de suas obrigações tributárias. As más leis não contrariam apenas os interesses dos cidadãos comuns, mas também desprestigiam o sistema legal e fomentam esse desapego à lei que, como um veneno, corrói o Estado de Direito. Sempre houve maus governos e sempre houve leis disparatadas ou injustas. Mas, numa sociedade democrática, diferentemente das ditaduras, há maneiras de denunciar, combater e corrigir esses extravios através dos mecanismos de participação do sistema: liberdade de imprensa, direito de crítica, jornalismo independente, partidos de oposição, eleições, mobilização da opinião pública, tribunais. Mas para que isso ocorra é imprescindível que o sistema democrático conte com a confiança e a sustentação dos cidadãos, aos quais, sejam quantas forem suas falhas, ele sempre pareça perfectível. O desapego à lei resulta da destruição dessa confiança, da sensação de que o próprio sistema está podre, e de que as más leis que ele produz não são exceções, e sim consequência inevitável da corrupção e dos tráficos que constituem sua razão de ser. Uma das consequências diretas da desvalorização da política por obra da civilização do espetáculo é o desapego à lei.
O desapego pressupõe que as leis são obra de um poder que não tem outra razão de ser senão a de servir a si mesmo, ou seja, às pessoas que o encarnam e administram, e que, portanto, as leis, os regulamentos e as disposições que emanam dele têm como lastro o egoísmo e os interesses particulares e de grupos, o que exonera moralmente o cidadão comum de cumpri-los. A maioria costuma acatar a lei porque não tem outra opção, por medo, ou seja, pela percepção de que há mais prejuízo que benefício em tentar infringir as normas, mas essa atitude enfraquece tanto a legitimidade e a força da ordem legal quanto das pessoas que delinquem ao infringi-las. Isso quer dizer que, no que se refere à obediência à lei, a civilização contemporânea também representa um simulacro, que, em muitos lugares e com frequência, se converte em pura farsa.
O desapego à lei nos leva de maneira inevitável a uma dimensão mais espiritual da vida em sociedade. O grande desprestígio da política relaciona-se sem dúvida com a ruptura da ordem espiritual que, no passado, pelo menos no mundo ocidental, funcionava como freio aos exageros e excessos cometidos pelos donos do poder. Ao desaparecer essa tutela espiritual da vida pública, prosperaram todos os demônios que degradaram a política e induziram os cidadãos a não ver nela nada que seja nobre e altruísta, e sim uma atividade dominada pela desonestidade.
A cultura deveria preencher esse vazio que outrora era ocupado pela religião. Mas é impossível que isso ocorra se a cultura, atraiçoando essa responsabilidade, se orienta resolutamente para a facilidade, esquiva-se aos problemas mais urgentes e transforma-se em mero entretenimento.
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