POR QUE NÃO EXISTE COMPONENTE CURRICULAR NEUTRO?: O EXEMPLO DA DISCIPLINA DE HISTÓRIA NA EDUCAÇÃO BÁSICA
Por JORGE ESCHRIQUI
Às escolas de Educação Básica são endereçados determinados conteúdos específicos. Tais conteúdos são selecionados e elaborados em ambientes externos de produção porque os programas curriculares representam as demandas políticas, sociais, econômicas e culturais presentes nos projetos políticos nacionais de cada contexto histórico. Em outras palavras, não há a separação dos conteúdos curriculares dos diferentes projetos de nação elaborados pelo Estado em diferentes momentos da história.
Um caso específico que pode ser analisado para referendar a afirmação citada no parágrafo anterior diz respeito à História, que sempre foi um ponto estratégico na política estatal. Em 1837, quando surgiu esta disciplina no Colégio D. Pedro II, na cidade do Rio de Janeiro, a preocupação dos conteúdos deveria ser com um ensino baseado em narrativas históricas permeadas pelas ações de grandes personagens responsáveis pela formação da sociedade nacional. Isto se devia ao fato de que, após a Independência do Brasil (1822), havia um Estado Imperial, mas não uma nação. Portanto, fazia-se necessária a construção de laços de identidade nacional que unisse a população brasileira naquele momento.
Durante o Estado Novo (1937-1945), quando havia um Estado autoritário regido por Getúlio Vargas, era importante a criação de um sentimento de consenso entre a população a respeito do papel decisivo do Estado e do grande líder nacional como agentes condutores das mudanças necessárias para a transformação do país em uma potência regida pelos princípios de ordem e progresso e respeitada na ordem internacional. Não foi por acaso que, durante tal período, difundiu-se a ideia da democracia racial nos materiais didáticos e no programa curricular de História, defendida por Gilberto Freire presente no livro "Casa Grande e Senzala". O objetivo era inculcar na população a concepção de que o Brasil foi, desde o período colonial, um lugar ordeiro e harmonioso, convivendo-se em paz desde sempre todas as etnias e culturas responsáveis pela formação histórica da sociedade nacional: europeus, indígenas e negros. Em outras palavras, tentava-se minimizar ou mesmo apagar no ensino de História do Brasil o passado de tentativa de destruição da cultura e submissão dos povos indígenas e de exploração da mão de obra escrava negra e de todas as consequências advindas de tais fatos em prol da necessidade de criação de uma sensação histórica de convívio harmonioso, ordeiro e pacífico entre os diversos segmentos da sociedade brasileira.
A partir de 1964, com a implantação do Regime Militar, estabeleceu-se um projeto nacional pautado em uma política estatal preocupada com o desenvolvimento econômico sob a intervenção do Estado e a segurança nacional no contexto da Guerra Fria e do embate entre socialismo real e capitalismo ou entre União Soviética e Estados Unidos. Isto explica a ênfase no tecnicismo da Educação Básica, resultando na redução da carga horária da grade curricular das Ciências Humanas e no destaque dado às Ciências Naturais e Biológicas, mais compatíveis com a proposta de formação de mão de obra capacitada para colaborar com o progresso econômico do país. Ademais, História e Geografia foram simplesmente banidas do antigo 1.º grau, sendo substituídas por disciplinas como Estudos Sociais, Educação Moral e Cívica (EMC) e Organização Social e Política Brasileira (OSPB), caracterizadas por apresentarem conteúdos generalizantes e sem análise crítica sobre a realidade nacional. Tais disciplinas estavam preocupadas em reproduzir os dogmas e os discursos moralistas e cívicos capazes de formarem uma massa de indivíduos obedientes e apoiadores do projeto nacional autoritário do Regime Militar, ou seja, em consonância com o ideal de segurança nacional.
Com o início da redemocratização do Brasil a partir do final dos anos 1970 e, sobretudo, durante a década de 1980, os programas curriculares de História tiveram que ser repensados para o atendimento das mobilizações por transformações no ensino da disciplina por parte da Associação Nacional dos Professores de História (ANPUH) e das demandas sociais de diversos segmentos sociais (mulheres, negros, homossexuais, operários, etc.) por uma maior participação no processo de elaboração de políticas nacionais. É neste cenário que se observava, paralelamente, a divulgação de novas abordagens teórico-metodológicas na ciência histórica no meio acadêmico e a inclusão e o reconhecimento da história "vista de baixo" e do papel dos homens e das mulheres comuns como sujeitos ativos na construção do processo histórico nacional e mundial.
Entretanto, é fundamental destacar-se que, mesmo em momentos de autoritarismo e imposição arbitrária por parte do Estado e de seus agentes de programas curriculares desconectados das realidades sociais, regionais e locais, nas quais se inserem a ampla gama de escolas públicas do país, alguns docentes sempre conseguiram encontrar meios para a compatibilização dos conteúdos de História com o contexto e as necessidades de seus alunos. Por exemplo, Selva Guimarães Fonseca relata no livro "Caminhos da História ensinada" vários casos de professores da disciplina que, durante o período do Regime Militar (1964-1985), utilizavam-se das aulas de EMC e OSPB para ministrarem os conteúdos específicos de História, Portanto, é preciso observar-se que há nas escolas os currículos e os documentos oficiais estabelecidos pelo Estado, mas também se fazem presentes os conteúdos reais, ou seja, abordagens e práticas pedagógicas que levam em consideração a realidade local, os anseios dos membros da comunidade escolar e a formação, a biografia, o comportamento e os hábitos dos docentes e da equipe gestora da escola.
É em decorrência destes currículos reais que os conteúdos e os conhecimentos estabelecidos em currículos e documentos oficiais são transformados em saberes históricos, ou seja, não apenas elaborados pelos estudiosos dos meio acadêmico e/ou difundidos pelas instituições e pelos agentes estatais e impostos às escolas, mas trabalhados didaticamente e às vezes reelaborados e reconstruídos no chão das salas de aula em consonância com as realidades, necessidades e expectativas de docentes, discentes e demais membros da comunidade escolar.
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